sexta-feira, 14 de junho de 2019

SEMELHANÇAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE AS TEORIAS DE DOSTOIÉVSKI E NIETZSCHE



Dostoyevsky em 1876. | Fonte = Cartas para Amigos e Família,
Chatto Windus 1914 | Autor = desconhecido


File:Nietzsche187c.jpg
Friedrich Nietzsche por volta de 1869. Foto tirada
 no  estúdio Gebrüder Siebe, Leipzig.

























Uma breve  análise fundamentada nas aulas de Filosofia da Religião, ministradas pelo professor dr. Paulo Afonso de Araújo, durante o curso de graduação em Filosofia (UFJF, 2011)

Por Ana Idalina Carvalho Nunes*

          O objetivo deste breve estudo é traçar uma relação entre Dostoiévski e Nietzsche, apontando semelhanças e divergências no pensamento dos dois filósofos. Para dar início às reflexões é preciso levar em consideração o intenso caráter religioso da obra de Dostoiévski porque, quando se percebe a influência que a mística ortodoxa exerceu sobre ele, torna-se evidente que Raskólnikov, por exemplo, é um personagem criado para criticar o niilismo. Raskólnikov encontra-se com Deus justamente quando, numa tentativa niilista, sente a impossibilidade de saltar para o estágio de homem extraordinário. De acordo com o professor Paulo Afonso, no texto apresentado na aula 1 sobre Dostoiévski, duas verdades se apresentam nos romances de Dostoiévski: a primeira delas é que “o homem jamais, em qualquer circunstância, abdica do desejo de afirmar sua liberdade. A vontade jamais se submete totalmente à razão”. Para Dostoiévski, segundo o professor, a segunda verdade é:

          Não acreditar em Deus e na imortalidade da alma é estar condenado a viver num universo carente de sentido; as personagens de seus grandes romances que chegam à conclusão de que Deus não existe inevitavelmente se destroem, pois, ao assumir o tormento de uma vida sem esperança, tornam-se monstros em sua desgraça. A moral cristã do amor e do auto sacrifício é uma suprema necessidade, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade em geral. (Aula nº 1, pág. 10. Filosofia da Religião II, prof. Paulo Afonso). 

          De acordo com Dostoiévski, as formas exteriores da vida, o ser humano de carne e osso, o mundo empírico, não são realidades últimas; o mundo interior, espiritual, o destino do espírito humano – isso é o mais importante. Seus textos mostram com muita clareza os conflitos experimentados por Raskólnikov na sua tentativa niilista. Num intenso conflito, Dostoiévski, ao mesmo tempo em que considera o "homem-ideia" um tipo superior, mostra a fraqueza de seus personagens niilistas em seus romances, levando-os a sofrer terríveis dilacerações após cometerem seus crimes, mostrando-os como vítimas de delírios, de convulsões, tendo sua vida transformada num inferno. Raskolhnikov (Crime e Castigo) entrega-se à polícia e, durante o tempo em que fica preso, dá os primeiros passos para reencontrar-se com o cristianismo. Nikolai Stavroguin (Os demônios), depois de escrever uma confissão, suicida-se; e Ivan Karamazov (Os irmãos Karamázov), ateu, enlouquece, arrasado pelas consequências de um artigo que escrevera. O destino de seus personagens confirma a sua segunda verdade, de que a vida humana carece de sentido se o homem não acredita na existência de Deus. Por isso seus personagens perecem, enlouquecem, assumem “o tormento de uma vida sem esperança, tornam-se monstros em sua desgraça”.
          Nietzsche, tendo sido um grande o admirador de Dostoiévski, apresenta, em sua concepção de super-homem, uma grande semelhança com o "homem-ideia" do escritor russo - embora as conclusões das ideias do "super-homem" sejam totalmente opostas às do "homem-ideia" de Dostoiévski, conforme pode-se constatar em Assim falou Zaratustra. Na verdade, o "homem-deus" de Dostoiévski não traz o vigor do "super-homem" de Nietzsche. Ele mais se parece com o último homem: é um “adepto do ateísmo fácil” (aula 1). Ele não tem a crença na existência de Deus, mas – em contrapartida - permanece preso às categorias e ao sistema de avaliação, tornando-se ainda pior do que o homem que crê em Deus. Nietzsche não apresenta tormento algum ao niilista, em seu projeto de seguir até o fim sua ideia. Contrariamente, enaltece o super-homem que, em nome de sua causa, torna-se insensível – caminhando com altivez acima dos preceitos morais do seu tempo. Nietzsche enaltece o niilista, como aquele que caminha em direção ao ‘além do homem’; o niilista de Nietzsche não se detém diante de obstáculos na concretização dos seus objetivos, sejam eles quais forem. O "super-homem" de Nietzsche assume na totalidade todas as consequências de um mundo sem Deus, tirando disso as devidas conclusões morais. Defendendo a disseminação de ética inovadora, ele vive afastado das massas, sempre dedicado ao trabalho de impor uma atitude nova diante da vida. “O 'super-homem' de Nietzsche salta para o estágio de ser extraordinário e lá permanece. O niilista de Nietzsche enterra Deus”. 
          O niilismo, na obra de Dostoiévski, apresenta personagens que, pretendendo ser deuses, vivem atormentados pela culpa e pelo remorso; são personagens marcados pelo conflito, pela angústia. Como o leão, eles se rebelam contra Deus, afirmam o “eu quero” contra o “tu deves”, mas não têm força para criar e, desta forma, apresentam-se como niilistas passivos, vivem o anticristianismo. Nietzsche, pelo contrário, apresenta um "super-homem" que parte do  cristianismo. Segundo ele, para chegar ao “além do homem”, é preciso que o homem comece pelo estágio de camelo. O "super-homem" de Nietzsche tem que chegar a ser criança, isto é, tem que criar. 
          Desta forma, embora a ideia de "super-homem" de Nietzsche seja proveniente do "homem deus" de Dostoiévski, ele supera o primeiro. Ainda que ambos apresentem a temática do niilismo, divergem em alguns aspectos fundamentais: em primeiro lugar, Dostoiévski critica o niilismo, conforme podemos constatar no final do romance Crime e Castigo, quanto Raskólnikov percebe sua incapacidade humana de tentar estar acima do bem e do mal. Seu personagem descobre e aceita a existência de Deus, como um Ser acima dos homens. É possível dizer que Raskólnikov tentou superar o valor moral existente, quis estar acima do bem e do mal, por meio de um processo niilista. Mas esse processo acabou proporcionando um retorno a Raskólnikov, pois ele acaba voltando-se para Deus. Raskólnikov viu-se impossibilitado de tornar-se um homem superior e foi por meio do processo niilista que ele encontrou Deus. Por mais que Raskólnikov combata, a metafísica, ela está presente nele. Deus o encontrou e, através deste encontro, Raskólnikov obteve uma experiência religiosa profunda e existencial. O Deus que se apresenta a Raskólnikov é um Deus existencial. A aventura de Raskólnikov foi perceber que ele não tem nenhum fundamento, a não ser em Deus. 
          Nietzsche, ao contrário de Dostoiévski, aponta o niilismo como um caminho de superação e libertação da metafísica, ou pelo menos, como um desprendimento desnecessário dos valores morais e éticos vinculados à tradição cristã. Para Nietzsche, é preciso que o niilista aceite o caos, que aceite o nada que existe lá fora. Entretanto, se ele apenas negar tudo, mas não criar sentido para a vida, para o cotidiano, ele não passará de um ateísta fácil, de um anticristão. Para ser um niilista ativo, para chegar ao ‘além do homem’, ele precisa criar sentido, criar um Deus. Desta forma, o niilismo é libertador, e Dionísio é o deus que tem a ver com tal situação, é “o princípio secreto que guia nossa cultura desde seu início quando a unidade originária dionisíaca foi perdida” (aula 11, p. 145). Nietzsche aponta o caminho do niilismo como uma alternativa de liberdade para o ser humano. É possível a percepção de um movimento contrário entre Nietzsche e Dostoiévski no que se refere ao niilismo – Dostoiévski parte do niilismo e chega, através de seus personagens, à necessidade da existência de Deus. Nietzsche, pelo contrário, parte da fé metafísica, da crença no deus moral como ponto onde se originou a busca pela verdade – e chega no estágio de não precisar mais de Deus. Para Nietzsche, os fracos é que foram os responsáveis pelo desenvolvimento do espírito e da inteligência no homem, pela busca do conhecimento que leva ao nada. Enfim, para se aproximar do “além do homem” de Nietzsche, os personagens niilistas de Dostoiévski precisariam não mais se rebelar contra seu destino, deveriam encontrar uma harmonia autêntica – ou pagã – com a totalidade. Enquanto o niilismo de Dostoiévski leva à loucura e à morte, o niilismo de Nietzsche leva ao fortalecimento do homem, à criação de sentido para o mundo, através da aceitação da realidade e da condição humana. . 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ARAÚJO, Paulo Afonso de. Aulas de Filosofia da Religião II. Curso de Filosofia: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011. 

GOLIN, Luana Martins. O niilismo de Dostoiévski e Nietzsche. Revista Eletrônica Correlatio, n. 16, dezembro de 2009. Disponível em: http://www.metodista.br/ppc/ppc/correlatio . Acessada em 02/12/2011. 

OLIVEIRA, Cássia Costa. O niilismo russo e a saída de Dostoiévski para o problema. Revista Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 20, p.171-176, jan./mar. 2011. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte Acessada em: 30/11/2011. OLIVEIRA, Rita de Cássia. Considerações sobre o niilismo em Nietzsche. Revista em Foco em Educação e Filosofia, Maranhão, vol. I, p. 56-65. Disponível em: http://www.educacaoefilosofia.uema.br/ Acessada em 02/12/2011.

* Cursei bacharelado e licenciatura em Filosofia pela UFJF (2010-2012), especialização em Filosofia, cultura e sociedade (UFJF, 2013-2014) e mestrado em Ciências Sociais (UFJF, 2015-2017)

ATENÇÃO: 
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