Dostoyevsky em 1876. | Fonte = Cartas para Amigos e Família, Chatto Windus 1914 | Autor = desconhecido |
Friedrich Nietzsche por volta de 1869. Foto tirada no estúdio Gebrüder Siebe, Leipzig. |
Uma breve análise fundamentada nas aulas de Filosofia da Religião, ministradas pelo professor dr. Paulo Afonso de Araújo, durante o curso de graduação em Filosofia (UFJF, 2011)
Por Ana Idalina Carvalho Nunes*
O objetivo deste breve estudo é traçar uma relação entre Dostoiévski e Nietzsche,
apontando semelhanças e divergências no pensamento dos dois filósofos. Para dar início às
reflexões é preciso levar em consideração o intenso caráter religioso da obra de Dostoiévski
porque, quando se percebe a influência que a mística ortodoxa exerceu sobre ele, torna-se
evidente que Raskólnikov, por exemplo, é um personagem criado para criticar o niilismo.
Raskólnikov encontra-se com Deus justamente quando, numa tentativa niilista, sente a
impossibilidade de saltar para o estágio de homem extraordinário. De acordo com o professor
Paulo Afonso, no texto apresentado na aula 1 sobre Dostoiévski, duas verdades se apresentam
nos romances de Dostoiévski: a primeira delas é que “o homem jamais, em qualquer
circunstância, abdica do desejo de afirmar sua liberdade. A vontade jamais se submete
totalmente à razão”. Para Dostoiévski, segundo o professor, a segunda verdade é:
Não acreditar em Deus e na imortalidade da alma é estar condenado a viver
num universo carente de sentido; as personagens de seus grandes romances
que chegam à conclusão de que Deus não existe inevitavelmente se destroem,
pois, ao assumir o tormento de uma vida sem esperança, tornam-se monstros
em sua desgraça. A moral cristã do amor e do auto sacrifício é uma suprema
necessidade, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade em geral. (Aula
nº 1, pág. 10. Filosofia da Religião II, prof. Paulo Afonso).
De acordo com Dostoiévski, as formas exteriores da vida, o ser humano de carne e osso,
o mundo empírico, não são realidades últimas; o mundo interior, espiritual, o destino do espírito
humano – isso é o mais importante. Seus textos mostram com muita clareza os conflitos
experimentados por Raskólnikov na sua tentativa niilista. Num intenso conflito, Dostoiévski,
ao mesmo tempo em que considera o "homem-ideia" um tipo superior, mostra a fraqueza de seus
personagens niilistas em seus romances, levando-os a sofrer terríveis dilacerações após
cometerem seus crimes, mostrando-os como vítimas de delírios, de convulsões, tendo sua vida transformada num inferno. Raskolhnikov (Crime e Castigo) entrega-se à polícia e, durante
o tempo em que fica preso, dá os primeiros passos para reencontrar-se com o cristianismo.
Nikolai Stavroguin (Os demônios), depois de escrever uma confissão, suicida-se; e Ivan
Karamazov (Os irmãos Karamázov), ateu, enlouquece, arrasado pelas consequências de um
artigo que escrevera. O destino de seus personagens confirma a sua segunda verdade, de que a
vida humana carece de sentido se o homem não acredita na existência de Deus. Por isso seus
personagens perecem, enlouquecem, assumem “o tormento de uma vida sem esperança,
tornam-se monstros em sua desgraça”.
Nietzsche, tendo sido um grande o admirador de Dostoiévski, apresenta, em sua
concepção de super-homem, uma grande semelhança com o "homem-ideia" do escritor russo -
embora as conclusões das ideias do "super-homem" sejam totalmente opostas às do "homem-ideia" de Dostoiévski, conforme pode-se constatar em Assim falou Zaratustra. Na verdade, o "homem-deus" de Dostoiévski não traz o vigor do "super-homem" de Nietzsche. Ele mais se parece
com o último homem: é um “adepto do ateísmo fácil” (aula 1). Ele não tem a crença na
existência de Deus, mas – em contrapartida - permanece preso às categorias e ao sistema de
avaliação, tornando-se ainda pior do que o homem que crê em Deus. Nietzsche não apresenta
tormento algum ao niilista, em seu projeto de seguir até o fim sua ideia. Contrariamente,
enaltece o super-homem que, em nome de sua causa, torna-se insensível – caminhando com
altivez acima dos preceitos morais do seu tempo. Nietzsche enaltece o niilista, como aquele que
caminha em direção ao ‘além do homem’; o niilista de Nietzsche não se detém diante de
obstáculos na concretização dos seus objetivos, sejam eles quais forem. O "super-homem" de
Nietzsche assume na totalidade todas as consequências de um mundo sem Deus, tirando disso
as devidas conclusões morais. Defendendo a disseminação de ética inovadora, ele vive
afastado das massas, sempre dedicado ao trabalho de impor uma atitude nova diante da vida.
“O 'super-homem' de Nietzsche salta para o estágio de ser extraordinário e lá permanece. O
niilista de Nietzsche enterra Deus”.
O niilismo, na obra de Dostoiévski, apresenta personagens que, pretendendo ser deuses,
vivem atormentados pela culpa e pelo remorso; são personagens marcados pelo conflito, pela
angústia. Como o leão, eles se rebelam contra Deus, afirmam o “eu quero” contra o “tu deves”,
mas não têm força para criar e, desta forma, apresentam-se como niilistas passivos, vivem o
anticristianismo. Nietzsche, pelo contrário, apresenta um "super-homem" que parte do cristianismo. Segundo ele, para chegar ao “além do homem”, é preciso que o homem comece
pelo estágio de camelo. O "super-homem" de Nietzsche tem que chegar a ser criança, isto é, tem
que criar.
Desta forma, embora a ideia de "super-homem" de Nietzsche seja proveniente do "homem deus" de Dostoiévski, ele supera o primeiro. Ainda que ambos apresentem a temática do
niilismo, divergem em alguns aspectos fundamentais: em primeiro lugar, Dostoiévski critica o
niilismo, conforme podemos constatar no final do romance Crime e Castigo, quanto
Raskólnikov percebe sua incapacidade humana de tentar estar acima do bem e do mal. Seu
personagem descobre e aceita a existência de Deus, como um Ser acima dos homens. É
possível dizer que Raskólnikov tentou superar o valor moral existente, quis estar acima do bem
e do mal, por meio de um processo niilista. Mas esse processo acabou proporcionando um
retorno a Raskólnikov, pois ele acaba voltando-se para Deus. Raskólnikov viu-se
impossibilitado de tornar-se um homem superior e foi por meio do processo niilista que ele
encontrou Deus. Por mais que Raskólnikov combata, a metafísica, ela está presente nele. Deus
o encontrou e, através deste encontro, Raskólnikov obteve uma experiência religiosa profunda
e existencial. O Deus que se apresenta a Raskólnikov é um Deus existencial. A aventura de
Raskólnikov foi perceber que ele não tem nenhum fundamento, a não ser em Deus.
Nietzsche, ao contrário de Dostoiévski, aponta o niilismo como um caminho de
superação e libertação da metafísica, ou pelo menos, como um desprendimento desnecessário
dos valores morais e éticos vinculados à tradição cristã. Para Nietzsche, é preciso que o niilista
aceite o caos, que aceite o nada que existe lá fora. Entretanto, se ele apenas negar tudo, mas não
criar sentido para a vida, para o cotidiano, ele não passará de um ateísta fácil, de um anticristão.
Para ser um niilista ativo, para chegar ao ‘além do homem’, ele precisa criar sentido, criar um
Deus. Desta forma, o niilismo é libertador, e Dionísio é o deus que tem a ver com tal situação,
é “o princípio secreto que guia nossa cultura desde seu início quando a unidade originária
dionisíaca foi perdida” (aula 11, p. 145). Nietzsche aponta o caminho do niilismo como uma
alternativa de liberdade para o ser humano. É possível a percepção de um movimento contrário
entre Nietzsche e Dostoiévski no que se refere ao niilismo – Dostoiévski parte do niilismo e
chega, através de seus personagens, à necessidade da existência de Deus. Nietzsche, pelo
contrário, parte da fé metafísica, da crença no deus moral como ponto onde se originou a busca
pela verdade – e chega no estágio de não precisar mais de Deus. Para Nietzsche, os fracos é
que foram os responsáveis pelo desenvolvimento do espírito e da inteligência no homem, pela
busca do conhecimento que leva ao nada. Enfim, para se aproximar do “além do homem” de
Nietzsche, os personagens niilistas de Dostoiévski precisariam não mais se rebelar contra seu
destino, deveriam encontrar uma harmonia autêntica – ou pagã – com a totalidade. Enquanto o
niilismo de Dostoiévski leva à loucura e à morte, o niilismo de Nietzsche leva ao fortalecimento
do homem, à criação de sentido para o mundo, através da aceitação da realidade e da condição
humana.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Paulo Afonso de. Aulas de Filosofia da Religião II. Curso de Filosofia: Universidade
Federal de Juiz de Fora, 2011.
GOLIN, Luana Martins. O niilismo de Dostoiévski e Nietzsche. Revista Eletrônica Correlatio,
n. 16, dezembro de 2009. Disponível em: http://www.metodista.br/ppc/ppc/correlatio .
Acessada em 02/12/2011.
OLIVEIRA, Cássia Costa. O niilismo russo e a saída de Dostoiévski para o problema. Revista
Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 20, p.171-176, jan./mar. 2011. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte Acessada em: 30/11/2011.
OLIVEIRA, Rita de Cássia. Considerações sobre o niilismo em Nietzsche. Revista em Foco em
Educação e Filosofia, Maranhão, vol. I, p. 56-65. Disponível em:
http://www.educacaoefilosofia.uema.br/ Acessada em 02/12/2011.
* Cursei bacharelado e licenciatura em Filosofia pela UFJF (2010-2012), especialização em Filosofia, cultura e sociedade (UFJF, 2013-2014) e mestrado em Ciências Sociais (UFJF, 2015-2017)
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