Por Ana Idalina Carvalho Nunes*
Archivo
del diario Clarín. Publicado em 1983 na revista dominical del periodico
ilustrando um artigo sobre o poeta,
en Buenos Aires, Argentina. Autor desconhecido. Fonte: Wikimedia Commons. |
Sartre
dá início a este capítulo de O ser e o
nada falando do argumento utilizado pelo senso comum, que defende a ideia
de que o homem é impotente, já que não tem liberdade para modificar a si mesmo,
para escapar ao destino de sua classe, de sua nação, de sua família, nem para
construir sua riqueza, para dominar seus mais primitivos apetites ou seus hábitos
mais insignificantes. O homem nasce operário, francês, com uma sífilis hereditária
ou tuberculose; e as adversidades da vida se apresentam de tal forma que são
necessários anos de paciência para se conseguir resultados mínimos. A impressão
que se tem é a de que o homem parece “ser feito” pelo clima e pela terra, pela
raça e pela classe, pela língua, pela história da coletividade da qual
participa, pela hereditariedade, pelas circunstâncias individuais de sua
infância, pelos hábitos adquiridos, pelos grandes e pequenos acontecimentos de
sua vida.
Tal argumento, entretanto, nunca perturbou os filósofos defensores da ideia de que o homem é livre. Descartes, o primeiro desses pensadores, reconhecia que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a nós mesmos do que a sorte" (1997, p. 593) e afirmava que não se pode levar em consideração grande parte dos fatos apresentados pelos deterministas. A adversidade das coisas, segundo este filósofo, não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, já que é através do próprio homem, a partir do seu posicionamento prévio acerca de um fim, de uma intencionalidade, que surge o coeficiente de adversidade. Sartre apresenta o exemplo de um rochedo que demonstra profunda resistência, quando minha intenção é removê-lo, mas que acaba tornando-se uma ajuda preciosa, a partir do momento em que intenciono escalá-lo para contemplar a paisagem. Se for analisado sob o aspecto do que é, em si mesmo, este rochedo, torna-se possível perceber que ele é neutro, que está ali, esperando ser iluminado por um fim, de modo a se manifestar como adversário ou auxiliar. Desta forma, ainda que as coisas em bruto limitem, desde a origem, a liberdade de ação do homem , é a liberdade deste homem que constitui a moldura, a técnica e os fins a partir dos quais as coisas vão se manifestar como limites. Mesmo que o rochedo se revele como "muito difícil de escalar" e o homem toma a decisão de desistir da escalada, é possível observar que o rochedo só se revela como obstáculo por ter sido originariamente captado como "escalável"; portanto, é liberdade de cada um que constitui os limites que irá encontrar depois (1997, p. 595).
Existem alguns fatores que o homem não pode escolher já que lhe são dados - a isto Sartre denomina de facticidade. Por exemplo, a livre decisão da minha consciência não me faz ser natural da França, se nasci no Brasil. A facticidade é o que faz com que o mundo tente resistir à liberdade. Existem cinco situações geradas pelo encontro da facticidade com a condição de liberdade ontológica do homem que, segundo Sartre, são denominadas de: “meu lugar”, “meu passado”, “meus arredores”, “meu próximo” e “minha morte”. Meu lugar é o lugar onde moro, mas também é a disposição e a ordem dos objetos que me aparecem cotidianamente: mesa, janela, rua, mar, etc. Este lugar me foi destinado pela minha liberdade e eu só tenho a possibilidade de ocupar esse lugar por causa do lugar que eu ocupei anteriormente, só tenho a oportunidade de ocupar esse lugar, a partir do momento em que sigo caminhos traçados pelos próprios objetos. (1997, p.603). É o lugar que ocupo agora que poderá me levar a outro lugar e a outro respectivamente, até que chegue àquele que já não remete a nada de mim: o lugar do meu nascimento. Segundo Sartre, é a partir de um lugar que ocupo, que passa a ser oferecida à minha escolha uma infinidade de outros lugares, como também uma infinidade é a partir do lugar que ocupo que uma infinidade de lugares me é negada. Vale ressaltar que, além disso, os objetos podem me trazer alguma coisa que não escolhi. Neste contexto, o espaço geométrico, isto é, a pura reciprocidade das relações espaciais, é puro nada. A minha única localização concreta é a constituição do meu lugar como centro, para o qual são calculadas as distâncias entre o objeto e mim, sem reciprocidade. (1997, p.604). Foi única e exclusivamente no ato através do qual a liberdade encontrou a facticidade e a apreendeu como lugar, que este lugar passou a se manifestar como obstáculo à realização dos meus desejos (1997, p. 608). Quanto ao passado, pode-se dizer que, se a liberdade é escolha de um fim em função do passado, da mesma forma, o passado só é aquilo que é em relação ao fim escolhido. E o conjunto das camadas de passado vivo, passado semimorto, sobrevivências, ambiguidades, antinomias, tudo isso é organizado através da unidade do meu projeto. Meus arredores, meu próximo.
Apresentando que ele chama de “situação-limite” - a morte, Sartre a considera como aquilo que vem do exterior e finaliza todas as possibilidades do homem: “assim, a morte não é minha possibilidade, no sentido anteriormente definido; é situação-limite, como avesso escolhido e fugidiço de minha escolha... Não sou 'livre para morrer', mas sou um livre mortal” (1997, p. 670-671). Apenas diante desta situação limite (a morte) é que a liberdade se desmorona. Embora Sartre considere “o absurdo da morte” como algo que foge às possibilidades humanas, ele reconhece o poder aniquilador que ela comporta - de sabotar a liberdade do homem e pôr fim a todas as suas possibilidades. Enfim, é a partir da escolha de um projeto existencial, a partir do sentido que o homem confere ao mundo, que ele pode falar de lugar, passado, etc.
A abordagem que Jean-Paul Sartre faz de “situação” não leva em consideração o condicionamento histórico do homem no engendramento de sua liberdade. O conceito fundamental em O Ser e o Nada é o de nadificação; o para-si se manifesta como poder nadificador, pois o nada habita sua própria raiz. Sartre chama de “situação” as circunstâncias sob as quais o Para-si concebe sua liberdade. O filósofo destaca o caráter paradoxal da liberdade, ao defender que só há liberdade em situação e que só há situação mediante a liberdade. Mas ele não exime o homem da responsabilidade pelos seus atos. De acordo com Sartre,
Tal argumento, entretanto, nunca perturbou os filósofos defensores da ideia de que o homem é livre. Descartes, o primeiro desses pensadores, reconhecia que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a nós mesmos do que a sorte" (1997, p. 593) e afirmava que não se pode levar em consideração grande parte dos fatos apresentados pelos deterministas. A adversidade das coisas, segundo este filósofo, não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, já que é através do próprio homem, a partir do seu posicionamento prévio acerca de um fim, de uma intencionalidade, que surge o coeficiente de adversidade. Sartre apresenta o exemplo de um rochedo que demonstra profunda resistência, quando minha intenção é removê-lo, mas que acaba tornando-se uma ajuda preciosa, a partir do momento em que intenciono escalá-lo para contemplar a paisagem. Se for analisado sob o aspecto do que é, em si mesmo, este rochedo, torna-se possível perceber que ele é neutro, que está ali, esperando ser iluminado por um fim, de modo a se manifestar como adversário ou auxiliar. Desta forma, ainda que as coisas em bruto limitem, desde a origem, a liberdade de ação do homem , é a liberdade deste homem que constitui a moldura, a técnica e os fins a partir dos quais as coisas vão se manifestar como limites. Mesmo que o rochedo se revele como "muito difícil de escalar" e o homem toma a decisão de desistir da escalada, é possível observar que o rochedo só se revela como obstáculo por ter sido originariamente captado como "escalável"; portanto, é liberdade de cada um que constitui os limites que irá encontrar depois (1997, p. 595).
Existem alguns fatores que o homem não pode escolher já que lhe são dados - a isto Sartre denomina de facticidade. Por exemplo, a livre decisão da minha consciência não me faz ser natural da França, se nasci no Brasil. A facticidade é o que faz com que o mundo tente resistir à liberdade. Existem cinco situações geradas pelo encontro da facticidade com a condição de liberdade ontológica do homem que, segundo Sartre, são denominadas de: “meu lugar”, “meu passado”, “meus arredores”, “meu próximo” e “minha morte”. Meu lugar é o lugar onde moro, mas também é a disposição e a ordem dos objetos que me aparecem cotidianamente: mesa, janela, rua, mar, etc. Este lugar me foi destinado pela minha liberdade e eu só tenho a possibilidade de ocupar esse lugar por causa do lugar que eu ocupei anteriormente, só tenho a oportunidade de ocupar esse lugar, a partir do momento em que sigo caminhos traçados pelos próprios objetos. (1997, p.603). É o lugar que ocupo agora que poderá me levar a outro lugar e a outro respectivamente, até que chegue àquele que já não remete a nada de mim: o lugar do meu nascimento. Segundo Sartre, é a partir de um lugar que ocupo, que passa a ser oferecida à minha escolha uma infinidade de outros lugares, como também uma infinidade é a partir do lugar que ocupo que uma infinidade de lugares me é negada. Vale ressaltar que, além disso, os objetos podem me trazer alguma coisa que não escolhi. Neste contexto, o espaço geométrico, isto é, a pura reciprocidade das relações espaciais, é puro nada. A minha única localização concreta é a constituição do meu lugar como centro, para o qual são calculadas as distâncias entre o objeto e mim, sem reciprocidade. (1997, p.604). Foi única e exclusivamente no ato através do qual a liberdade encontrou a facticidade e a apreendeu como lugar, que este lugar passou a se manifestar como obstáculo à realização dos meus desejos (1997, p. 608). Quanto ao passado, pode-se dizer que, se a liberdade é escolha de um fim em função do passado, da mesma forma, o passado só é aquilo que é em relação ao fim escolhido. E o conjunto das camadas de passado vivo, passado semimorto, sobrevivências, ambiguidades, antinomias, tudo isso é organizado através da unidade do meu projeto. Meus arredores, meu próximo.
Apresentando que ele chama de “situação-limite” - a morte, Sartre a considera como aquilo que vem do exterior e finaliza todas as possibilidades do homem: “assim, a morte não é minha possibilidade, no sentido anteriormente definido; é situação-limite, como avesso escolhido e fugidiço de minha escolha... Não sou 'livre para morrer', mas sou um livre mortal” (1997, p. 670-671). Apenas diante desta situação limite (a morte) é que a liberdade se desmorona. Embora Sartre considere “o absurdo da morte” como algo que foge às possibilidades humanas, ele reconhece o poder aniquilador que ela comporta - de sabotar a liberdade do homem e pôr fim a todas as suas possibilidades. Enfim, é a partir da escolha de um projeto existencial, a partir do sentido que o homem confere ao mundo, que ele pode falar de lugar, passado, etc.
A abordagem que Jean-Paul Sartre faz de “situação” não leva em consideração o condicionamento histórico do homem no engendramento de sua liberdade. O conceito fundamental em O Ser e o Nada é o de nadificação; o para-si se manifesta como poder nadificador, pois o nada habita sua própria raiz. Sartre chama de “situação” as circunstâncias sob as quais o Para-si concebe sua liberdade. O filósofo destaca o caráter paradoxal da liberdade, ao defender que só há liberdade em situação e que só há situação mediante a liberdade. Mas ele não exime o homem da responsabilidade pelos seus atos. De acordo com Sartre,
“A
consequência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem,
estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é
responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a
palavra 'responsabilidade' em seu sentido corriqueiro de 'consciência de ser o
autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto'” (1997, p. 678).
A
responsabilidade aparece como um fardo que o homem tem de carregar sobre os
ombros, uma vez que é o próprio homem quem confere um sentido ao seu ser no
mundo. Através das múltiplas escolhas que faz, só lhe resta responder por todos
os seus atos no final. Ao considerar o homem como o único responsável pelo seu
modo de ser, Sartre irá reconhecer o aspecto “opressivo” da liberdade. Tal
opressão se daria pelo fato de o Para-si não ser o seu próprio fundamento e, no
entanto, dever responder pelo seu modo de ser escolhido. O homem é abandonado no mundo, não no
sentido de permanecer desamparado e passivo em um universo hostil, mas no
sentido de que ele se vê repentinamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um
mundo pelo qual é inteiramente responsável, do qual não consegue se livrar, nem
ao menos por um instante, já que é responsável até mesmo pelo meu próprio
desejo de livrar-se das responsabilidades (1997, p. 680).
Além de tudo isso, a noção sartreana de responsabilidade tem ainda um caráter universal: uma vez que é o homem quem confere sentido ao mundo e aos seus projetos, pode-se dizer que é ele quem deve responder pelo seu mundo. Ao tratar da experiência da Segunda Guerra mundial, o filósofo reforça sua tese de que devemos responder pelo nosso mundo: “se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à minha imagem e eu a mereço” (1997, p. 678). O que Sartre parece pretender enfatizar com a sua noção de responsabilidade é que as ações ou omissões humanas não podem ser concebidas sob uma fria neutralidade. O mundo não permanece ileso diante da ação do homem, diante das escolhas e dos projetos que assume livremente. Em resumo: não podemos ficar “em cima do muro”.
Desde o momento em que o indivíduo nasce, começa a se construir como um existente; e este indivíduo prossegue se fazendo, durante toda a sua existência, através das ações que pratica. É assim que ele constrói a sua “história de vida”, que só tem o seu final no instante em que morre. Depois de morto, o indivíduo se torna prisioneiro dos vivos, os outros se apoderam de sua vida. Ele permanece presente como objeto de análises, comentários, permanece presente na lembrança dos vivos – entretanto, já não pode se defender, não pode retrucar diante de algo que dele falem. Para Sartre, a morte não pertence à estrutura do para-si (consciência), ou seja, a morte nada tem de humana, muito menos participa de nossa existência. A morte não é um possível escolhido pelo homem e, se o projeto individual implica em superar a situação dada, visando um inexistente futuro, isso significa que o para-si é uma “espera de esperas que, por sua vez, esperam esperas” (1997, p. 659). A morte é inesperada, surpreendente e imprevisível. De acordo com Sartre, toda a significação que atribuímos à situação e aos atos, provém dos fins projetados; neste caso, se a morte não tem futuro, ela não pode ser o sentido da nossa vida. Muito pelo contrário – a morte retira da vida toda sua significação. Mesmo se considerarmos que a morte é um limite à liberdade, esta consideração não se aplica à consciência, pois, com a chegada da morte - juntamente com o juízo do outro - a consciência (para-si) não mais existirá e não haverá mais liberdade a ser limitada no mundo. Além do mais, só é possível experimentar a morte no outro, visto que a própria morte requer o indivíduo vivo para presenciá-la. Conforme diz Sartre, “ela é o triunfo do ponto de vista do outro sobre o ponto de vista que sou sobre mim mesmo” (1997, p. 662), ou seja, a morte faz com que tudo aquilo que o indivíduo fez durante sua vida, passe a ficar sob o domínio dos vivos. Entretanto, “não sou ‘livre para morrer’, mas sou um livre mortal” (1997, p. 671).
A partir da leitura do texto, o que se pode concluir é que, se a liberdade vem ao mundo a partir da existência do homem, e se está situada num mundo que oferece obstáculos que restringem a liberdade do indivíduo, então a morte é a situação que não se espera nem se experiencia, mas que aprisiona o homem na eternidade, atribuindo juízos ao que deixou para trás. Aquilo que o indivíduo realizou, o seu passado, ou aquilo que ele fez de si mesmo, permanecerá aprisionado pelo juízo do outro. E se podemos concluir que a morte não faz parte da vida do homem, concluiremos igualmente que ela também não pode ser considerada um obstáculo, já que no momento em que a consciência deixa de existir, também a liberdade não mais existe, pois a liberdade vem ao mundo através da consciência e, por conseguinte, a liberdade não é finalizada pela morte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada.
Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
SILVA, Paulo César Gondim da. O conceito de liberdade em “O ser e o nada”
de Jean-Paul Sartre. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de
pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
2010.
WELTMAN, Michelle. Ontologia fenomenológica e liberdade em “O ser e o nada” de Jean-Paul
Sartre. Dissertação de mestrado defendida na Faculdade Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 2009.
CITAR ESTE ARTIGO DA SEGUINTE FORMA:
NUNES, A. I. C. Liberdade e facticidade: a situação. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 23 jun. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/liberdade-e-facticidade-situacao-sobre.html . Acesso em (data do acesso).
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