terça-feira, 22 de outubro de 2013

DIÁLOGO DE FORMATURA, OU SOBRE DÚVIDAS DE UMA COLAÇÃO DE GRAU

Por Ivan Bilheiro*

Caminhando pela ágora juizforana, o campus da UFJF, deparei-me com Sócrates (!): 
IVAN: Sócrates! Devo aos deuses a sorte deste encontro. Não sabes, naturalmente, mas há tempos por aí eu o buscava.
SÓCRATES: Não estava por aqui, por isso não me encontravas. Chegaste há tempos a esta casa?
IVAN: Sim. Estudo aqui. E ainda hoje irei ao Cine-Theatro Central, para a colação de grau. Estarei entre aqueles que se formarão em Filosofia.
SÓCRATES: Uma formatura em Filosofia?
IVAN: Sim.
SÓCRATES: Tempos estranhos são esses. Haverá uma cerimônia?
IVAN: Por Zeus que sim, Sócrates. Comemoraremos com os colegas esta etapa vencida.
SÓCRATES: E o que comemorarão?
IVAN: A conclusão de nossos estudos em Filosofia.
SÓCRATES: Falas de uma conclusão. Fale-me sobre isso.
IVAN: Depois de alguns anos dedicando-nos às leituras, às discussões e seminários, teremos, por fim, o reconhecimento dos esforços com a entrega de um diploma.
SÓCRATES: Os filósofos de hoje recebem diplomas?
IVAN: Não os filósofos, ó Sócrates. Estes são reconhecidos por suas reflexões. Os estudantes de Filosofia recebem diplomas.
SÓCRATES: E o que fazem os estudantes de Filosofia?
IVAN: Justamente, dedicam-se às reflexões daqueles verdadeiramente filósofos.
SÓCRATES: E conseguem ler tudo o que estes filósofos produziram?
IVAN: Isto seria impossível, Sócrates.
SÓCRATES: Então, se não entram em contato com todas as obras, ao menos com parte delas?
IVAN: Exatamente.
SÓCRATES: Se não fazem a leitura de todas as obras da Filosofia, mas somente parte delas, então dedicam-se a alguns fragmentos da Filosofia. Concordas?
IVAN: Não poderia negá-lo.
SÓCRATES: E o que é um fragmento, se não uma parte menor de um todo?
IVAN: É o que define o fragmento.
SÓCRATES: Estudando fragmentos, estudam partes, não chegam a compreender o todo. É o que fazem estes chamados estudantes de Filosofia?
IVAN: Eu o disse anteriormente.
SÓCRATES: Assim, não chegaram a compreender toda a Filosofia, mas iniciaram sua caminhada por ela.
IVAN: De pleno acordo, Sócrates. Só alguns fragmentos deste caminho é o que conquistamos.
SÓCRATES: Mas são estudantes. E o que fazem os estudantes?
IVAN: Creio que investigam, que se debruçam sobre as leituras, que buscam o saber, que lidam com as dúvidas e as usam como motor de seu trabalho.
SÓCRATES: Buscam conhecer, porque não conhecem ainda. É isso?
IVAN: Resumiste bem, Sócrates. É isso.
SÓCRATES: E estes estudantes estarão em festa hoje, porque serão diplomados?
IVAN: Acredito que sim.
SÓCRATES: Não sou deste tempo. Busco entendê-lo. Nada sei sobre a questão, mas investigo contigo, jovem. Dizias-me que tu e teus colegas são iniciantes na Filosofia, e que tomaram contato com uns poucos fragmentos desta grande área. Não era isso?
IVAN: Parece-me que sim.
SÓCRATES: Ainda afirmavas, há pouco, que os estudantes são aqueles que buscam conhecer, pois não conhecem. Na verdade, reconhecem sua ignorância, mas se dedicam no esforço de conhecer.
IVAN: Isto sim, Sócrates!
SÓCRATES: E os estudantes de Filosofia, enfim, que são eles? Seriam eles iniciantes de um caminho de dúvidas, já que começaram a trilhar uma área que pouco conhecem?
IVAN: Não compreendo bem o que dizes.
SÓCRATES: Pelas definições até então dadas, estes jovens com quem estarás hoje serão reconhecidos por seus esforços de dedicação à Filosofia.
IVAN: Serão sim.
SÓCRATES: E os esforços foram de estudo, o que é o buscar conhecer, ainda sem conhecer.
IVAN: É isso.
SÓCRATES: Estudaram o que pouco conhecem, porque reconhecestes que a Filosofia só foi fragmentariamente abordada por eles, certo?
IVAN: Não posso negá-lo.
SÓCRATES: Se estudam porque não conhecem, e ligam-se a uma área que pouco oferece de certezas, então angariaram mais coisas a investigar que conhecimentos.
IVAN: É este o cenário.
SÓCRATES: E a essa conquistas darão um certificado?
IVAN: É o que farão.
SÓCRATES: Serão diplomados por enveredarem por dúvidas?
IVAN: Parece que sim.
SÓCRATES: E o que comemorarão, então?
IVAN: Por Zeus, Sócrates! Já não sei mais o que comemoraremos!

* Ivan Bilheiro é licenciado em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), instituição na qual cursa a licenciatura na área. Especialista em Filosofia pela Universidade Gama Filho (UGF) e pós-graduando em Ciência da Religião pela UFJF.
 

sábado, 18 de maio de 2013

ÉTICA A NICÔMACO



       O QUE É A ÉTICA PARA ARISTÓTELES   

Idalina de Carvalho         

 


Os gregos chamaram de ética à elaboração teórica que se ocupa dos costumes (moral), denominação que veio a ser consagrada. Para Aristóteles, a ética é uma das ciências práticas, isto é, relacionadas à ação, sendo as demais a política e a econômica. Nessa subdivisão, a ética aparece com o nome de sabedoria. No Livro I da “Ética a Nicômaco" dá proeminência à política que está definida nos textos que dedicou à matéria e foram preservados:

“Uma cidade, claro está, não é um simples amontoado para evitar as deficiências mútuas e intercambiar os serviços. Estas são duas de suas condições necessárias, mas que não determinam a cidade. Uma cidade é uma reunião de casas e de famílias para viver bem, isto é, para realizar uma vida perfeita e independente”. 

Isso quer dizer que Aristóteles não separa a política da moral, como se dá nos tempos modernos. Política e ética estão de certa forma superpostas, confundindo-se os objetos de ambas, porquanto a segunda trata das virtudes e dos meios de adquiri-las, sendo condição da felicidade, que, por sua vez, é o objetivo visado pela cidade.

A ÉTICA A NICÔMACO
O livro inicia com o questionamento sobre o que é o bem, afirmando também que todo indivíduo, bem como toda e qualquer ação ou escolha tem como objetivo um bem, e este bem é aquilo para onde todas as coisas tendem. E qual seria o mais alto de todos os bens? Segundo Aristóteles, a felicidade é a melhor, a mais nobre e mais aprazível coisa do mundo e, sendo considerada uma atividade da alma em consonância com a virtude (e não como riqueza, honra, prazer etc), ela precisa dos bens exteriores, porque não é possível realizar nobres atos sem os meios. Por conta isso, questiona se a felicidade é adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou adestramento; se é conferida pela providência divina ou se é produto do acaso.
     Se a felicidade é, dentre as coisas humanas, a melhor, pode-se assegurar que é uma dádiva divina. Mesmo que venha como um resultado da virtude, pela aprendizagem ou adestramento, ela está entre as coisas mais divinas. A felicidade é uma atividade virtuosa da alma; os demais bens são a condição dela, ou são úteis como instrumentos para sua realização.
O livro II da “Ética a Nicômaco”  aborda as virtudes em suas duas espécies: intelectuais e morais. De acordo com Aristóteles, as intelectuais são resultado do ensino e por isso precisam de experiência e tempo. Já as virtudes morais, são adquiridas pelo hábito – elas não surgem naturalmente em nós, são adquiridas pelo exercício, da mesma forma como acontece com as artes. É, de acordo com Aristóteles, pelas nossas ações na relação com  os outros que nos tornamos justos ou injustos – por isso é preciso estar atento para a qualidade de nossos atos:  já que tudo depende deles, desde a juventude é necessário criar o hábito de praticar atos virtuosos. É importante considerar que nas virtudes, o excesso ou a falta são destrutivos:  a exatidão está no meio-termo, o caminho do meio entre a deficiência e o excesso no que se refere às paixões, às virtudes morais. A virtude é meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta.  Entretanto, nem toda ação e nem toda paixão admitem meio-termo:  há algumas ações ou paixões que implicam em maldade, como a inveja. Elas são más em si mesmas, nelas não há retidão, mas erro. É absurdo procurar meio-termo em atos injustos. Levando em conta que o estudo das virtudes tem como resultado a ação (e não o conhecimento da virtude), é necessário ressaltar a prática dos atos. É pela prática dos atos justos que se gera o homem justo, é pela prática de atos temperantes que se gera o homem temperante; é através da ação que existe a possibilidade de alguém tornar-se bom. Aristóteles prossegue, diferenciando as paixões e ações como voluntárias e involuntárias, mas não discorreremos sobre o assunto, para não alongar demasiadamente a explanação –  passaremos à especificação das virtudes morais e intelectuais.
Entre as virtudes morais – temperança, coragem, liberalidade, magnificência, o justo orgulho, a calma, a veracidade, a espirituosidade, a amabilidade, a modéstia, a justiça – esta última é considerada a virtude mais completa -  a justiça é considerada por muitos a maior das virtudes. A justiça é a disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo e a desejar o que é justo. É uma virtude completa por ser o exercício atual da virtude inteira, ou seja, aquele que a possui pode exercer sua virtude sobre si e sobre o próximo. Por isso se diz que somente a justiça, entre todas as virtudes, é o bem do outro, visto que é possível fazer o que é vantajoso a um e outro. O melhor dos homens é aquele que exerce sua virtude para com o outro, pois essa tarefa é a mais difícil.  
Vejamos abaixo  a apresentação das virtudes morais, através de quadro feito pela filósofa Marilena Chauí, em seu livro “Introdução à Filosofia – dos pré-socráticos a Aristóteles:
Anexo I: QUADRO DAS VIRTUDES MORAIS
Sentimento ou 
paixão
Situação em que
 o sentimento ou 
a paixão 
são suscitados
Vício (excesso)
Vício (falta)
Virtude (justo meio)
Prazeres
Tocar, ter ingerir
Libertinagem
Insensibilidade
Temperança
Medo
Perigo, dor
Covardia
Temeridade
Coragem
Confiança
Perigo, dor
Temeridade
Covardia
Coragem
Riqueza
Dinheiro, bens
Prodigalidade
Avareza
Liberalidade
Fama
Opinião alheia
Vaidade
Humildade
Magnificência
Honra
Opinião alheia
Vulgaridade
Vileza
Respeito próprio
Cólera
Relação com os outros
Irascibilidade
Indiferença
Gentileza
Convívio
Relação com os outros
Zombaria
Grosseria
Agudeza de espírito
Conceder prazer
Relação com os outros
Condescência
Tédio
Amizade
Vergonha
Relação de si com outros
Sem-vergonhice
Timidez
Modéstia
Sobre a boa sorte de alguém
Relação dos outros consigo
Inveja
Malevolêcia
Justa apreciação
Sobre a má sorte de alguém
Relação dos outros consigo
Malevolência
Inveja
Justa indignação
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia:dos pré-socráticos a Aristóteles, vol. 01. São Paulo: Brasiliense, 1994.

De acordo com Aristóteles, a parte racional da alma se divide em: científica (direcional ou prática) e calculativa (especulativa e teórica).  A calculativa é uma parte da alma que concebe um princípio racional, ela versa sobre coisas universais e teóricas, que não podem ser a não ser aquilo que são. O objeto da parte calculativa é a verdade, logo, para o conhecimento especulativo o bem se identifica com o verdadeiro e o mal com o falso. As disposições, pelas quais a alma possui a verdade, são cinco: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva – que são as virtudes intelectuais. A arte (tkné) é idêntica a uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocínio. Toda arte visa a geração e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa que tanto pode ser como não ser, e cuja origem está no que produz, e não no que é produzido. A arte não se ocupa nem com as coisas que são ou que se geram por necessidade, nem com as que fazem de acordo com a natureza. A arte é uma questão de produzir e não de agir. No que se refere ao conhecimento científico (episteme), seu objeto é o necessário e eterno; toda ciência pode ser ensinada e seu objeto aprendido. O conhecimento científico é um estado que nos torna capaz de demonstrar, é quando um homem tem certa espécie de convicção, além de conhecer os pontos de partida, que possui conhecimento científico. É uma disposição em virtude da qual demonstramos. Sabedoria Prática (phrónesis) é característica de um homem que delibera bem sobre o que é bom e conveniente para ele. Mas o homem com essa sabedoria não procurar coisas boas somente para si, mas sabe deliberar sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa em geral. A sabedoria pratica é uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são boas ou más para o homem. A sabedoria Teorética ou Filosófica (Sofia) é a razão intuitiva combinada com o conhecimento científico, orientada para objetos mais elevados. É, dentre as formas de conhecimento, a mais perfeita; superior à sabedoria prática que tem como objeto as coisas humanas e diz respeito à ação; deveríamos possuir ambas as espécies de sabedoria, mas de preferência a sabedoria teorética. E, por fim, a Razão Intuitiva (nõus) consiste aquilo pelo qual aprendemos as últimas premissas de onde parte a ciência; ela aprende os primeiros princípios. Seu método é a indução, que apreende a verdade universal e a partir disso aparece como evidente a si.

QUESTÕES PRESENTES NA ÉTICA DE NICÔMACO: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma questão importante abordada na ética aristotélica, em especial no livro “Ética a Nicômaco”, é a questão da responsabilidade. Para Aristóteles, "O homem é princípio e genitor de seus atos como o é de seus filhos" O princípio da responsabilidade baseia-se em duas pressuposições: a realidade é contingente (o futuro não está definido) e depende do indivíduo que age (o indivíduo é considerado autor de seus atos quando o ato depende dele). Essas são as duas exigências para que uma ação possa ser considerada virtuosa. O caráter é, para Aristóteles, resultado de nossos atos - vícios e virtudes não são simples traços psicológicos adquiridos, mas têm significado moral, porque pertencem ao campo daquilo que depende de nós.
Outro ponto importante é no referente à perfectibilidade do caráter: nesta abordagem há uma distinção a ser introduzida na questão da responsabilidade humana, de acordo com as palavras do filósofo: "não é da mesma maneira que as ações e o habitus são de pleno consentimento, nós somos senhores de nossos atos, do princípio ao fim…Mas dos nossos habitus, só somos senhores do princípio" O ato, na sua inteligibilidade, depende de mim, porque tenho um domínio sobre as conseqüências diretas desse último; em compensação, não posso antecipar precisamente todas as conseqüências indiretas dos hábitos que assumi.
A amizade é outra questão presente em “Ética a Nicômaco”, para a qual Aristóteles dedica dois livros (VIII e IX). Na totalidade da ética, para além dos livros sobre a amizade, muito pouco é dito no sentido de se sugerir que o homem pode e deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas; o altruísmo está completamente ausente. Um homem deseja o bem do seu amigo por amor ao amigo, e não como um meio para sua felicidade. As várias formas de amizade mencionadas por Aristóteles constituem todas as ilustrações da natureza social essencial do homem. No plano inferior, necessita de amizades úteis . Num plano mais elevado, forma amizades por prazer, isto é, tem um prazer natural no convívio com os seus amigos. Num plano ainda mais elevado, constitui amizades por bondade, nas quais um amigo ajuda outro a viver a melhor vida.
No que tange à vida ideal, Aristóteles encara o bem-estar como uma atividade em conformidade com a virtude. Para Aristóteles, a contemplação constitui o ingrediente fundamental do bem-estar.O bem-estar deve ser uma atividade de acordo com a virtude da melhor parte de nós, ou seja, a razão; a atividade do bem-estar é teorética. É esta a melhor atividade que somos capazes, uma vez que é o exercício do melhor em nós sobre o melhor de todos os objetos, aqueles que são eternos e imutáveis. Segundo Aristóteles,  não devemos seguir aqueles que afirmam que, sendo nós homens, devemos limitar o pensamentos às coisas humanas. Devemos, na medida do possível, nos apoderarmos da vida eterna, vivendo a vida desta parte de nós, por ínfima que seja, que constitui a melhor e mais verdadeira de nós próprios. Quem vive assim é o homem feliz.
O que se mostra bem claro nesta obra de Aristóteles é a sua maneira de apontar uma  medida para todas as ações humanas, que é o justo-meio. A felicidade é definida como atividade da alma, dirigida pela virtude perfeita; é excelente e divina, mas não é presente dos deuses e nem produto do acaso, porque é preciso conquistá-la com muito exercício e muita prática da virtude. Para tanto é necessário indagar sobre a virtude e em que condição ela é um meio-termo para a felicidade. As virtudes morais consistem em ser um meio entre dois extremos viciosos; em toda quantidade é possível distinguir o excesso, o pouco e uma medida, que é o meio-termo; quando se trata de coisas, o meio-termo é aquele ponto que se encontra em igual distância entre dois pontos extremos, mas quando se trata do homem, o meio-termo é aquilo que não peca nem por excesso e nem por defeito, e esta medida muda muito e não é única para todos os homens. Como é difícil estabelecer o justo-meio em cada caso particular, deve-se deixar esta definição a uma pessoa sensata, que decida retamente; mas há casos em que não cabe estabelecer nenhuma medida, assim como em excesso não existe medida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosá. Col. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973..
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia:dos pré-socráticos a Aristóteles, vol. 01. São Paulo: Brasiliense, 1994.


sábado, 11 de maio de 2013

ENTRE QUATRO PAREDES




ANÁLISE DO PERSONAGEM ESTELLE


Idalina de Carvalho *





No inferno de Sartre não existe a possibilidade de pausa, não há como apagar as luzes e estar só; o que existe de evidente em Entre quatro paredes é o ‘ser-visto’. O olhar é o tema que permeia todo este texto de Sartre, e também é um dos temas centrais de O ser e o nadaEntre quatro paredes encerra, em cada simples fala de personagem, toda a filosofia de Sartre, baseada sempre no olhar,  na forma como se observa a pessoa, tomando-a como objeto. Tomar a pessoa como objeto, entretanto, é apenas  uma das maneiras possíveis de encontro com o outro, segundo Sartre. A outra forma desse encontro, que encerra a grande questão, está no ato de ser-visto. Quando o outro me olha, tudo se modifica, pois quando sou visto não capto os olhos do outro – mas  uma consciência que me olha por detrás desses olhos.  O outro me toma como objeto, e é  daí  que surge o  conflito na relação com o outro. É como se o olhar dele  me transformasse em pedra, e  assim, para me defender, eu tivesse também que petrificá-lo. Mas essa petrificação, embora cause repulsão, também seduz, pois o que o Para-si  mais quer é alcançar a forma estável do Em-si. É isso que observamos na relação entre os três personagens de Entre quatro paredes. Estelle precisa do olhar de Garcin para manter sua imagem de bela e desejável. Garcin precisa do olhar de Inês para se justificar de sua covardia, e Inês precisa do olhar amedrontado dos outros dois para manter sua escolha de manipuladora. Mas esse olhar que eles tanto desejam do outro é também o inferno para cada um deles, ou seja, “aquele que me olha “  é sempre o meu carrasco.
O personagem escolhido por mim, para ser tema deste breve estudo é Estelle Rigault, mulher muito bonita e elegante, orgulhosa e prepotente. Ela se apresenta como uma  moça pobre que ficou órfã  e que acabou  aceitando casar-se com um amigo de seu pai, para ajudar o irmão doente e a família sem recursos. Segundo Estelle, o homem era um velho rico e bondoso, e nas mãos dele ela deixou sua juventude. Ela relata que chegou a encontrar, certo dia, seu verdadeiro amor, mas decidiu renunciar a ele pela responsabilidade com sua família. Morreu em decorrência desse gesto, de “desgosto amoroso”, dominada por uma pneumonia. Através do autorretrato traçado por Estelle, ela é uma pessoa abnegada, alguém que se sacrificou pelo bem da família. O que os dois companheiros de quarto questionam é o porquê de Estelle ter ido parar no inferno, já que se diz tão santa. De acordo com os companheiros, a bela e atraente Estelle não parece tão santa quanto diz ser. Inês e Garcin  acusam-na de trair o marido, de ser responsável pelo suicídio do amante. Estelle termina confessando o motivo pelo qual imagina ter ido parar no inferno: ela teve uma filha com Roger, o amante, e, na presença dele, matou a criança, jogando-a do alto de um prédio em um lago, na Suíça. O amante ficou tão desesperado, que terminou por suicidar-se.
O que Estelle demonstra querer é a preservação, a qualquer custo, do seu status e da imagem de desejável e bonita. Ela é, na verdade, superficial, vaidosa, fútil, e valoriza apenas as coisas exteriores. Chega a afirmar que quando não se vê no espelho, precisa se apalpar para saber se existe. Essa exterioridade de Estelle fica clara até mesmo quando ela conta sobre o seu funeral, falando do choro da amiga, sem se preocupar com o que ela sentiu ou não, mas supondo que ela não derramou lágrimas para não estragar a maquiagem. Um outro exemplo dessa visão estética da vida, de sua exterioridade,  é o momento em que, no auge de seu desespero, ela pede a Garcin que olhe para ela: “Eu lhe peço. Você tem de olhar  para qualquer coisa. Se não for para mim, será para o bronze, para os sofás... Vale mais a pena olhar para mim, apesar de tudo” (pág. 14).  E, mais, no momento em que Garcin suplica sua confiança, sua aprovação, quando ele se desespera com medo de ser considerado ali também covarde, a resposta que Estelle lhe oferece: “Você não tem o queixo de um covarde, a boca de um covarde, a voz de um covarde; seus cabelos não são de um covarde. E é pela sua boca, pelos seus cabelos que gosto de você”. (pág.17).
 É possível perceber, através das falas transcritas no parágrafo anterior, a superficialidade do olhar de Estelle, a sua falta de interioridade. Ela vive dissolvida no mundo dos objetos e tomando a si e ao outro como objeto também. Ela não consegue refletir sobre seus atos, por isso, talvez, Sartre dê ênfase à falta que ela sente do espelho. O espelho é que leva a pessoa a se posicionar diante de si mesma em imagem, já que o seu rosto pertence ao mundo; somente diante do espelho é que Estelle teria acesso ao próprio rosto. Por isso,  na ausência de espelhos,  ela necessita que o olhar do outro a reflita.
Outro fator interessante na peça é a forma como Sartre mostra os personagens no que se refere ao seu desligamento da Terra. Quando a imagem que eles queriam ter de si mesmos começa a ser desmontada no mundo dos vivos, eles vão aos poucos parando de ver e de escutar os que ficaram lá, e começam a lutar para proteger e assegurar, no inferno, a imagem que desejam ter e não têm mais na Terra. Com Estelle isso acontece no momento em que ela vê um antigo admirador seu dançando com sua amiga Olga. Quando Olga  conta ao rapaz o que Estelle fez à criança e as consequências que seus atos tiveram para seu amante Roger, Estelle percebe que perdeu o status e a imagem que tinha. Estelle diz: “Ah, ele me chamava de sua água-viva, seu cristal. Pois o cristal se quebrou em migalhas”. (pág. 14). Logo depois que ela constata que sua imagem foi desfeita no conceito do rapaz, Estelle diz: “Já não estou ouvindo bem. Apagaram-se as luzes, como para um tango. Por que tocam na surdina? Mais alto! Como está longe! Eu não ouço mais nada... Nunca mais. A terra me abandonou”. Numa tentativa desesperada de substituir o carinho do admirador, ela pede a Garcin: “Garcin, olhe para mim, me abrace” (pág. 14). Ou seja, se Estelle quiser salvar sua imagem de “preciosa” aos olhos do outro, ela sabe que terá que conquistar esse status entre as quatro paredes do inferno sartreano.
Em resumo, o perpétuo jogo de encontros e desencontros que as consciências vivem, por serem liberdades, é o que mostra o triângulo de personagens de Entre quatro paredes. Quando eu estou  em harmonia com o olhar do outro, tudo está em paz, não existe conflito algum. No entanto, quando o que o outro vê em mim não confere com a imagem que eu quero ter, o outro se torna um espelho que aponta minhas falhas e mentiras. Por isso Garcin diz: “O inferno são os outros” (pág. 19).  Isso quer dizer que, se a consciência é liberdade e essa liberdade está condenada a existir no mundo com os outros, é totalmente impossível fugir deste inferno e, sendo assim, como não existe uma saída,  “Pois bem, continuemos”.

* Bacharela e licenciada em Filosofia pela UFJF, pós-graduanda em Filosofia, Cultura e Sociedade  na mesma instituição. Professora de Filosofia no Presídio Estadual de Cataguases.

ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido.  Fonte:    http://www. intermedi a. uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep        ...