ANÁLISE DO PERSONAGEM ESTELLE
Idalina de Carvalho *
No
inferno de Sartre não existe a possibilidade de pausa, não há como apagar as luzes
e estar só; o que existe de evidente em Entre quatro paredes é o ‘ser-visto’.
O olhar é o tema que permeia todo este texto de Sartre, e também é um dos temas
centrais de O ser e o nada. Entre
quatro paredes encerra, em cada simples fala de personagem, toda a filosofia
de Sartre, baseada sempre no olhar, na
forma como se observa a pessoa, tomando-a como objeto. Tomar a pessoa como
objeto, entretanto, é apenas uma das
maneiras possíveis de encontro com o outro, segundo Sartre. A outra forma desse
encontro, que encerra a grande questão, está no ato de ser-visto. Quando o
outro me olha, tudo se modifica, pois quando sou visto não capto os olhos do
outro – mas uma consciência que me olha
por detrás desses olhos. O outro me toma
como objeto, e é daí que surge o
conflito na relação com o outro. É como se o olhar dele me transformasse em pedra, e assim, para me defender, eu tivesse também
que petrificá-lo. Mas essa petrificação, embora cause repulsão, também seduz,
pois o que o Para-si mais quer é
alcançar a forma estável do Em-si. É isso que observamos na relação entre os
três personagens de Entre quatro paredes. Estelle precisa do olhar de Garcin
para manter sua imagem de bela e desejável. Garcin precisa do olhar de Inês
para se justificar de sua covardia, e Inês precisa do olhar amedrontado dos
outros dois para manter sua escolha de manipuladora. Mas esse olhar que eles
tanto desejam do outro é também o inferno para cada um deles, ou seja, “aquele
que me olha “ é sempre o meu carrasco.
O
personagem escolhido por mim, para ser tema deste breve estudo é Estelle
Rigault, mulher muito bonita e elegante, orgulhosa e prepotente. Ela se
apresenta como uma moça pobre que ficou
órfã e que acabou aceitando casar-se com um amigo de seu pai,
para ajudar o irmão doente e a família sem recursos. Segundo Estelle, o homem
era um velho rico e bondoso, e nas mãos dele ela deixou sua juventude. Ela
relata que chegou a encontrar, certo dia, seu verdadeiro amor, mas decidiu
renunciar a ele pela responsabilidade com sua família. Morreu em decorrência
desse gesto, de “desgosto amoroso”, dominada por uma pneumonia. Através do autorretrato
traçado por Estelle, ela é uma pessoa abnegada, alguém que se sacrificou pelo
bem da família. O que os dois companheiros de quarto questionam é o porquê de
Estelle ter ido parar no inferno, já que se diz tão santa. De acordo com os
companheiros, a bela e atraente Estelle não parece tão santa quanto diz ser. Inês
e Garcin acusam-na de trair o marido, de
ser responsável pelo suicídio do amante. Estelle termina confessando o motivo
pelo qual imagina ter ido parar no inferno: ela teve uma filha com Roger, o
amante, e, na presença dele, matou a criança, jogando-a do alto de um prédio em
um lago, na Suíça. O amante ficou tão desesperado, que terminou por suicidar-se.
O
que Estelle demonstra querer é a preservação, a qualquer custo, do seu status e
da imagem de desejável e bonita. Ela é, na verdade, superficial, vaidosa,
fútil, e valoriza apenas as coisas exteriores. Chega a afirmar que quando não
se vê no espelho, precisa se apalpar para saber se existe. Essa exterioridade
de Estelle fica clara até mesmo quando ela conta sobre o seu funeral, falando
do choro da amiga, sem se preocupar com o que ela sentiu ou não, mas supondo
que ela não derramou lágrimas para não estragar a maquiagem. Um outro exemplo
dessa visão estética da vida, de sua exterioridade, é o momento em que, no auge de seu desespero, ela
pede a Garcin que olhe para ela: “Eu lhe
peço. Você tem de olhar para qualquer
coisa. Se não for para mim, será para o bronze, para os sofás... Vale mais a
pena olhar para mim, apesar de tudo” (pág. 14). E, mais, no momento em que
Garcin suplica sua confiança, sua aprovação, quando ele se desespera com medo
de ser considerado ali também covarde, a resposta que Estelle lhe oferece: “Você não tem o queixo de um covarde, a boca
de um covarde, a voz de um covarde; seus cabelos não são de um covarde. E é
pela sua boca, pelos seus cabelos que gosto de você”. (pág.17).
É possível perceber,
através das falas transcritas no parágrafo anterior, a superficialidade do
olhar de Estelle, a sua falta de interioridade. Ela vive dissolvida no mundo
dos objetos e tomando a si e ao outro como objeto também. Ela não consegue
refletir sobre seus atos, por isso, talvez, Sartre dê ênfase à falta que ela
sente do espelho. O espelho é que leva a pessoa a se posicionar diante de si
mesma em imagem, já que o seu rosto pertence ao mundo; somente diante do
espelho é que Estelle teria acesso ao próprio rosto. Por isso, na ausência de espelhos, ela necessita que o olhar do outro a reflita.
Outro
fator interessante na peça é a forma como Sartre mostra os personagens no que
se refere ao seu desligamento da Terra. Quando a imagem que eles queriam ter de
si mesmos começa a ser desmontada no mundo dos vivos, eles vão aos poucos
parando de ver e de escutar os que ficaram lá, e começam a lutar para proteger
e assegurar, no inferno, a imagem que desejam ter e não têm mais na Terra. Com
Estelle isso acontece no momento em que ela vê um antigo admirador seu dançando
com sua amiga Olga. Quando Olga conta ao
rapaz o que Estelle fez à criança e as consequências que seus atos tiveram para
seu amante Roger, Estelle percebe que perdeu o status e a imagem que tinha.
Estelle diz: “Ah, ele me chamava de sua água-viva,
seu cristal. Pois o cristal se quebrou em migalhas”. (pág. 14). Logo depois
que ela constata que sua imagem foi desfeita no conceito do rapaz, Estelle diz:
“Já não estou ouvindo bem. Apagaram-se as
luzes, como para um tango. Por que tocam na surdina? Mais alto! Como está
longe! Eu não ouço mais nada... Nunca mais. A terra me abandonou”. Numa
tentativa desesperada de substituir o carinho do admirador, ela pede a Garcin: “Garcin, olhe para mim, me abrace” (pág. 14). Ou seja, se Estelle quiser salvar sua
imagem de “preciosa” aos olhos do outro, ela sabe que terá que conquistar esse
status entre as quatro paredes do inferno sartreano.
Em
resumo, o perpétuo jogo de encontros e desencontros que as consciências vivem,
por serem liberdades, é o que mostra o triângulo de personagens de Entre
quatro paredes. Quando eu estou em
harmonia com o olhar do outro, tudo está em paz, não existe conflito algum. No
entanto, quando o que o outro vê em mim não confere com a imagem que eu quero
ter, o outro se torna um espelho que aponta minhas falhas e mentiras. Por isso
Garcin diz: “O inferno são os outros” (pág.
19). Isso quer dizer que, se a consciência é
liberdade e essa liberdade está condenada a existir no mundo com os outros, é
totalmente impossível fugir deste inferno e, sendo assim, como não existe uma
saída, “Pois bem, continuemos”.
* Bacharela e licenciada em Filosofia pela UFJF, pós-graduanda em Filosofia, Cultura e Sociedade na mesma instituição. Professora de Filosofia no Presídio Estadual de Cataguases.
Oi, Idalina. Há muitos anos, ainda quando muito jovem, assisti a essa inesquecível peça, que me marcou para sempre. Seu excelente ensaio, tão rico quanto admiravelmente conciso, realmente lançou nova luz para mim, sobre o assunto. Achei ótimo. Vou salvá-lo, para eventual referência futura. Parabéns, Ricardo Alfaya.
ResponderExcluirObrigada, Ricardo.
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