domingo, 30 de junho de 2019

AS FRONTEIRAS DO OCEANO CÓSMICO - uma breve análise sobre "Cosmos" de Carl Sagan


Foto de Carl Sagan feita por Michael  Okoniewski. 
Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wi
ki/File:CarlSagan.1994.jpg
                                       Por Ana Idalina Carvalho Nunes
                                                                   

          O capítulo I do livro “Cosmos” (também adaptado para televisão, como série), do cientista e astrônomo novaiorquino, Carl Edward Sagan (1934-1996), parte dos limites do grande oceano espacial, rumo a uma viagem cósmica que começa a 8 bilhões de anos-luz da Terra. A bordo da nave espacial da sua imaginação, ele transporta o leitor  às maravilhas do Cosmos, às mais distantes galáxias, nebulosas, supernovas e pulsares. Deslizamos  para lá de Plutão, além dos anéis de Saturno, do majestoso sistema de Urano e da luminosidade do lado noturno de Júpiter. Penetrando nas nuvens da Terra, chegamos ao Egito, onde Eratóstenes pela primeira vez mediu a Terra. 
O Dr. Sagan mostra, neste ponto específico, de que forma Eratóstenes fez isso. No episódio, o astrônomo  mostra a Biblioteca da Alexandria, que foi o berço da aprendizagem da Antiguidade. Ele faz ressurgir a biblioteca em toda a sua glória - para ilustrar a fragilidade do conhecimento. É então que, para nos fazer compreender a enormidade do tempo que passou desde o Big bang até hoje, Sagan nos apresenta o "Calendário Cósmico". O professor Ricardo Velez destaca, em artigo publicado em seu blog no dia 26 de agosto último (2011),  a importância de um fragmento logo no início deste primeiro capítulo do “cosmos”, que faz referência à mitologia maia, segundo o relato de Popol Vuh, dos Maias Quiché: 

“Os primeiros homens criados e formados foram chamados de Feiticeiros do Riso Fatal, Feiticeiros da Noite, Os Desleixados e Feiticeiros Negros (...). Foram dotados de inteligência e sabiam tudo o que havia no mundo. Quando olhavam, viam instantaneamente tudo ao redor, e eles contemplaram a volta do arco dos céus e da face arredondada da terra (...). (Então o Criador disse): Eles sabem tudo (...). O que  deveremos fazer com eles agora? – Deixe que a visão deles alcance somente aquilo que está próximo; deixe-os ver somente uma pequena parte da face da terra! (...). Não são eles, pela própria natureza, simples criaturas resultantes de nosso trabalho? Deverão ser deuses também?


Velez ressalta as perspectivas de conhecimento realista e a transcendental – no texto citado, aparecem claramente delineadas as duas perspectivas do conhecimento, a realista e a transcendental – a primeira aferindo o poder divino de conhecer a substância da realidade; e a segunda  nos limitando na esfera dos fenômenos.  Segundo o professor, a leitura acaba nos levando a reconhecer nossa temporalidade, quando nos coloca frente à verdade (no caso do conhecimento realista, pelo fato de termos a essência da realidade e da verdade. No caso do conhecimento transcendental, pela aproximação da verdade a que chegamos).

            Outra parte importante a destacar no texto, de acordo com o professor, é a respeito do calendário cósmico elaborado pelos Maias e pelos Astekas, segundo o qual o fim deste Universo estaria marcado para dezembro de 2012. Em matéria postada em seu blog no último dia 1º de novembro, intitulada “Fim do mundo previsto pelos maias é um erro de interpretação”, o professor Ricardo Vélez  comenta reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo daquele mesmo dia, informando que a previsão se tratava de uma falha na interpretação do calendário:

 

“(...) não se trataria da desaparição física do atual Cosmo, mas de uma renovação do mesmo, o fechamento de um ciclo para a abertura de um outro, o que não queria dizer que o atual Universo fosse, necessariamente, submetido à destruição física. Tratar-se-ia, melhor, de um novo contexto interpretativo da vida cotidiana.”

 

            Outro ponto relevante destacado pelo professor em sala de aula refere-se à afirmação de Sagan de que o único lugar típico do Cosmo é o vácuo universal. De acordo com Sagan, a Terra não é o único lugar, tampouco é o lugar típico, pois o Cosmos é – em sua maior parte – vazio e, sendo assim, “o único lugar típico é o vácuo universal, frio e vasto, a noite interminável do espaço galáctico, um local tão estranho e desolado que, por sua comparação, planetas estrelas e galáxias parecem dolorosamente raros e adoráveis” (Blog Cosmologia II, nov.2011). De acordo com o professor, inseridos ao acaso no Cosmos, seria mínima a chance de nos descobrirmos em um planeta ou próximos a um deles  - a chance seria de uma em um bilhão de trilhão.
            A leitura de “As fronteiras do oceano cósmico”, bem como dos outros capítulos  de “Cosmos”, apresenta ao leitor a possibilidade de supor a imensidão do Cosmos e de perceber o real significado da vida humana dentro do universo. Somos um segundo, talvez menos que isso diante da vida de estrelas, de corpos celestes. Mas, embora minúsculos, somos, ainda assim,  o grande espetáculo do universo – a vida humana.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

VELEZ RODRIGUEZ, Ricardo.  Apostila de Cosmologia II. UFJF. Juiz de Fora, 2011.

________. Fim do mundo previsto pelos maias é um erro de interpretação. Cosmologia – Uma visão histórica. Disponível em: http://cosmologiai.blogspot.com. Acesso em 14 novembro 2011.


________. As fronteiras do oceano cósmico. Cosmologia – Uma visão histórica. Disponível em: http://cosmologiai.blogspot.com/2011/08/as-fronteiras-do-oceano-cosmico.html. Acesso em 14 novembro 2011.


Trabalho da disciplina de Cosmologia II, apresentado ao professor Ricardo Velez  pela aluna Ana Idalina Carvalho Nunes. ICH/UFJF, nov. 2011.

(Observem que eu ainda estava dando os primeiros passos na produção do texto científico, um texto raso, um pouco fraco  (risos)).




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quinta-feira, 27 de junho de 2019

A BUSCA DA VERDADE - uma breve análise do texto IV de Fédon

                                                                        Por Ana Idalina Carvalho Nunes*
A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, Museu Metropolitano de ArteNova Iorque.

          Fédon IV,  texto que tem no seu epílogo a morte de Sócrates, é permeado de  falas que nos permitem formular diferentes questões sobre o que realmente Platão quis deixar claro para o leitor neste texto. Entre tantas teses possíveis, apresento uma que defenderei através de argumentos baseados nas palavras do próprio Sócrates: Sócrates aceitou a morte com serenidade ou ele desejou a morte como um passo mais ousado na sua busca pela verdade? Em diversos trechos, apesar de não afirmar que a alma é imortal verdadeiramente, parece claro o posicionamento simpático de Sócrates às lendas e à tradição de uma forma geral, tema bastante discutido nesta última conversa do filósofo com seus discípulos. E a ideia de imortalidade de alma é o atrativo que move intensamente Sócrates a aceitar sua condenação e passar a desejar a morte, como viagem de busca de conhecimento num mundo perfeito.
          Logo no início do texto “Resposta a Cebes”, Sócrates, para certificar-se de que  compreendera perfeitamente o que Cebes queria saber, pergunta a ele se o que desejava era que se demonstrasse que a alma era indestrutível e imortal, ideia que, uma vez ausente no pensamento do filósofo que está prestes a morrer, tiraria dele a confiança, a convicção de ir encontrar no além uma felicidade jamais alcançada na Terra. Parece-me que, nas entrelinhas dessa fala a Cebes, Sócrates fala de si próprio, do sentimento que o move naquele momento em que a vida lhe resta por um fio.  De acordo com o relato de Fédon a Equécrates, Sócrates estava sereno, e sua serenidade – acredito nisso - era alimentada pela confiança e pela convicção que ele tinha de que iria encontrar no além uma felicidade grandiosa. E em que consistia a felicidade para Sócrates? Qual era a sua busca incessante, aquela causa para a qual dedicou toda a sua vida? A felicidade grandiosa para Sócrates era encontrar  a verdade, a verdade em si –  presente apenas no mundo das ideias, no Hades, onde ele pretendia estar naquele mesmo dia.
          Posso complementar esse pensamento transcrevendo outro trecho da conversa, em que Sócrates afirma: “Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele  belo em si” (pág. 42). Levando em consideração suas palavras, podemos concluir que ele estava também firmemente convencido de que o que torna possível encontrar a verdade é a existência da verdade em si. E a possibilidade de encontrar essa verdade em si o atraía fortemente – quem sabe a ponto de fazê-lo desejar a morte.
          Sócrates, em várias partes do texto Fédon IV, cita  as lendas, e tais citações nos levam a crer que seus pontos de vista coincidiam com algumas dessas histórias. Pense comigo: Você citaria um autor ou determinada obra, repetidas vezes, apresentando argumentos que fortalecessem as ideias desse autor ou obra, se não compartilhasse dos mesmos pensamentos? Caso desprezasse uma obra, você a citaria apresentando argumentos que fizessem o leitor desprezá-la tanto quanto você a despreza ou tentaria argumentar a favor de tal obra? Claro que iria querer fazer com que o leitor pensasse como você, certo? E o que Sócrates faz a respeito das lendas? Ele tenta encontrar argumentos que fortaleçam a ideia da existência do Hades, ideias sobre o destino das almas boas e das almas ruins, enfim, embora não afirme a existência do Hades e de tudo o que envolve a ideia de imortalidade da alma, Sócrates ampara tanto sua tese (muitas vezes até a própria lenda) com bons argumentos.
          Outra razão que nos permite perceber o desejo de Sócrates em atingir a verdade em si está amparado no trecho final da página 51, quando ele fala de suas opiniões a respeito da terra e de suas regiões. Ele diz que, na verdade. o homem mora num buraco da terra e acredita ver o céu, quando vê apenas o ar. Sócrates fala que se tivéssemos a chance de voar e contemplar longamente o que existe acima da terra, verificaríamos que é lá que  estão “o céu verdadeiro, a luz verdadeira e a terra verdadeira”, - a que poderíamos somar também a noção de verdade em si. Após fazer tal afirmação, entretanto, declara se tratar de uma lenda. As seis páginas seguintes são dedicadas a esta lenda, que Sócrates narra com entusiasmo, interpretando fatos da mitologia com grande liberdade poética,  falando sobre essa outra terra, a terra verdadeira, onde se é possível entrar em contato com as divindades face a face, onde a verdadeira felicidade existe. Ora, ninguém fala tão entusiasmadamente de um assunto que não lhe seja simpático, de um pensamento pelo qual não sinta afinidade. Sócrates buscava a verdade em si e, reafirmo, sentia atração pela morte porque acreditava encontrar no Hades a sabedoria que almejava. Se durante toda a sua vida ele se despojou dos prazeres materiais, naquele momento  não importava para Sócrates mais nada que se relacionasse à vida do corpo;  era a alma, apenas a alma que lhe interessava, mais que em toda a sua vida passada. Antes mesmo de morrer, ele já se sentia liberto do corpo e sentia necessidade de consumar a própria morte.
          Mais de uma vez neste mesmo texto ele afirmou ser uma  loucura, uma falta de bom senso um homem acreditar que tais lendas fossem, na realidade, exatamente como aparecem descritas. Mas diz também que acreditar ser semelhante o que se dá “com nossas almas e seu destino é uma opinião boa e digna de confiança”. Então, embora aconselhe que não se deva que a lenda seja uma verdade, diz que é bom e confiável acreditar na semelhança da lenda com a verdade. E fala ainda que é preciso repetir a lenda mitologica como fórmula mágica e é por isso que ele a repete tantas vezes (pág. 55) – o que torna explícita a sua simpatia pelas ideias transmitidas por ela.
          No epílogo, que relata os momentos finais de sua vida, Sócrates perde a paciência com Críton que, sem conseguir entender a importância que tem para Sócrates o momento que ele está por viver, a alegria que sente em seguir para o Hades, preocupa-se com o destino do corpo de Sócrates, perguntando como quer ser enterrado. Ele já não se aceita mais como corpo, mas apenas e exclusivamente como alma.  Adianta-se em tomar o veneno, ainda sabendo que poderia esperar mais um pouco. E anda de um lado para outro, cumprindo as recomendações para que a cicuta aja adequadamente. Antecipa-se, como criança que solta-se das mãos dos pais e  sai correndo, quando vê à sua frente um parque de diversões – e o além, a outra vida, para Sócrates - vale lembrar -  é muito mais que um parque de diversões,  é a oportunidade de deparar-se com o belo em si, com a verdade em si, com a plenitude; é a  oportunidade de estar face a face com a divindade, com outros mais inteligentes que ele. Sócrates brinda essa passagem de um mundo para outro,  como quem comemora, ao ganhar uma bolsa de estudos para universidade de um país distante, sabendo antecipadamente o quão preciosos serão os conhecimentos que adquirirá naquele lugar. “Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços”, relatou Fédon a Equécrates, falando de como Sócrates tomou a cicuta. Na verdade, Sócrates empunhou a taça de veneno com o cuidado de quem toma um remédio que lhe trará o bem que mais se quer – no caso de Sócrates, a libertação da alma.
       Pelo menos até que um contra-argumento os lance por terra,  creio que os argumentos apresentados demonstram com clareza a intenção suicida de Sócrates.  Um suicídio belo,  ao estilo de sua filosofia, que tranforma o epílogo numa melodia suave, uma harmonia perfeita, harmonia em si. Deixar destruir o próprio corpo em benefício da alma que, imortal, segue etérea o seu caminho para a evolução.          
           Fédon IV,  texto que tem no seu epílogo a morte de Sócrates, é permeado de  falas que nos permitem formular diferentes questões sobre o que realmente Platão quis deixar claro para o leitor neste texto. Entre tantas teses possíveis, apresento uma que defenderei através de argumentos baseados nas palavras do próprio Sócrates: Sócrates aceitou a morte com serenidade ou ele desejou a morte como um passo mais ousado na sua busca pela verdade? Em diversos trechos, apesar de não afirmar que a alma é imortal verdadeiramente, parece claro o posicionamento simpático de Sócrates às lendas e à tradição de uma forma geral, tema bastante discutido nesta última conversa do filósofo com seus discípulos. E a ideia de imortalidade de alma é o atrativo que move intensamente Sócrates a aceitar sua condenação e passar a desejar a morte, como viagem de busca de conhecimento num mundo perfeito.

          Logo no início do texto “Resposta a Cebes”, Sócrates, para certificar-se de que  compreendera perfeitamente o que Cebes queria saber, pergunta a ele se o que desejava era que se demonstrasse que a alma era indestrutível e imortal, ideia que, uma vez ausente no pensamento do filósofo que está prestes a morrer, tiraria dele a confiança, a convicção de ir encontrar no além uma felicidade jamais alcançada na Terra. Parece-me que, nas entrelinhas dessa fala a Cebes, Sócrates fala de si próprio, do sentimento que o move naquele momento em que a vida lhe resta por um fio.  De acordo com o relato de Fédon a Equécrates, Sócrates estava sereno, e sua serenidade – acredito nisso - era alimentada pela confiança e pela convicção que ele tinha de que iria encontrar no além uma felicidade grandiosa. E em que consistia a felicidade para Sócrates? Qual era a sua busca incessante, aquela causa para a qual dedicou toda a sua vida? A felicidade grandiosa para Sócrates era encontrar  a verdade, a verdade em si –  presente apenas no mundo das ideias, no Hades, onde ele pretendia estar naquele mesmo dia.
          Posso complementar esse pensamento transcrevendo outro trecho da conversa, em que Sócrates afirma: “Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele  belo em si” (pág. 42). Levando em consideração suas palavras, podemos concluir que ele estava também firmemente convencido de que o que torna possível encontrar a verdade é a existência da verdade em si. E a possibilidade de encontrar essa verdade em si o atraía fortemente – quem sabe a ponto de fazê-lo desejar a morte.
          Sócrates, em várias partes do texto Fédon IV, cita  as lendas, e tais citações nos levam a crer que seus pontos de vista coincidiam com algumas dessas histórias. Pense comigo: Você citaria um autor ou determinada obra, repetidas vezes, apresentando argumentos que fortalecessem as ideias desse autor ou obra, se não compartilhasse dos mesmos pensamentos? Caso desprezasse uma obra, você a citaria apresentando argumentos que fizessem o leitor desprezá-la tanto quanto você a despreza ou tentaria argumentar a favor de tal obra? Claro que iria querer fazer com que o leitor pensasse como você, certo? E o que Sócrates faz a respeito das lendas? Ele tenta encontrar argumentos que fortaleçam a ideia da existência do Hades, ideias sobre o destino das almas boas e das almas ruins, enfim, embora não afirme a existência do Hades e de tudo o que envolve a ideia de imortalidade da alma, Sócrates ampara tanto sua tese (muitas vezes até a própria lenda) com bons argumentos.
          Outra razão que nos permite perceber o desejo de Sócrates em atingir a verdade em si está amparado no trecho final da página 51, quando ele fala de suas opiniões a respeito da terra e de suas regiões. Ele diz que, na verdade. o homem mora num buraco da terra e acredita ver o céu, quando vê apenas o ar. Sócrates fala que se tivéssemos a chance de voar e contemplar longamente o que existe acima da terra, verificaríamos que é lá que  estão “o céu verdadeiro, a luz verdadeira e a terra verdadeira”, - a que poderíamos somar também a noção de verdade em si. Após fazer tal afirmação, entretanto, declara se tratar de uma lenda. As seis páginas seguintes são dedicadas a esta lenda, que Sócrates narra com entusiasmo, interpretando fatos da mitologia com grande liberdade poética,  falando sobre essa outra terra, a terra verdadeira, onde se é possível entrar em contato com as divindades face a face, onde a verdadeira felicidade existe. Ora, ninguém fala tão entusiasmadamente de um assunto que não lhe seja simpático, de um pensamento pelo qual não sinta afinidade. Sócrates buscava a verdade em si e, reafirmo, sentia atração pela morte porque acreditava encontrar no Hades a sabedoria que almejava. Se durante toda a sua vida ele se despojou dos prazeres materiais, naquele momento  não importava para Sócrates mais nada que se relacionasse à vida do corpo;  era a alma, apenas a alma que lhe interessava, mais que em toda a sua vida passada. Antes mesmo de morrer, ele já se sentia liberto do corpo e sentia necessidade de consumar a própria morte.
          Mais de uma vez neste mesmo texto ele afirmou ser uma  loucura, uma falta de bom senso um homem acreditar que tais lendas fossem, na realidade, exatamente como aparecem descritas. Mas diz também que acreditar ser semelhante o que se dá “com nossas almas e seu destino é uma opinião boa e digna de confiança”. Então, embora aconselhe que não se deva que a lenda seja uma verdade, diz que é bom e confiável acreditar na semelhança da lenda com a verdade. E fala ainda que é preciso repetir a lenda mitológica como fórmula mágica e é por isso que ele a repete tantas vezes (pág. 55) – o que torna explícita a sua simpatia pelas ideias transmitidas por ela.
          No epílogo, que relata os momentos finais de sua vida, Sócrates perde a paciência com Críton que, sem conseguir entender a importância que tem para Sócrates o momento que ele está por viver, a alegria que sente em seguir para o Hades, preocupa-se com o destino do corpo de Sócrates, perguntando como quer ser enterrado. Ele já não se aceita mais como corpo, mas apenas e exclusivamente como alma.  Adianta-se em tomar o veneno, ainda sabendo que poderia esperar mais um pouco. E anda de um lado para outro, cumprindo as recomendações para que a cicuta aja adequadamente. Antecipa-se, como criança que solta-se das mãos dos pais e  sai correndo, quando vê à sua frente um parque de diversões – e o além, a outra vida, para Sócrates - vale lembrar -  é muito mais que um parque de diversões,  é a oportunidade de deparar-se com o belo em si, com a verdade em si, com a plenitude; é a  oportunidade de estar face a face com a divindade, com outros mais inteligentes que ele. Sócrates brinda essa passagem de um mundo para outro,  como quem comemora, ao ganhar uma bolsa de estudos para universidade de um país distante, sabendo antecipadamente o quão preciosos serão os conhecimentos que adquirirá naquele lugar. “Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços”, relatou Fédon a Equécrates, falando de como Sócrates tomou a cicuta. Na verdade, Sócrates empunhou a taça de veneno com o cuidado de quem toma um remédio que lhe trará o bem que mais se quer – no caso de Sócrates, a libertação da alma.
          Pelo menos até que um contra-argumento os lance por terra,  creio que os argumentos apresentados demonstram com clareza a intenção suicida de Sócrates.  Um suicídio belo,  ao estilo de sua filosofia, que transforma o epílogo numa melodia suave, uma harmonia perfeita, harmonia em si. Deixar destruir o próprio corpo em benefício da alma que, imortal, segue etérea o seu caminho para a evolução.

*Este foi um dos primeiros textos escritos por mim, ainda no primeiro período do curso de Filosofia (UFJF, 2010), disciplina de Antropologia Filosófica I. 
CITAR COMO:

NUNES, A. I. C. A busca da verdade. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 27 jun. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/a-busca-da-verdade-no-texto-iv-de-fedon.html  Acesso em (data de acesso).

domingo, 23 de junho de 2019

LIBERDADE E FACTICIDADE: A SITUAÇÃO (sobre “O ser e o nada” de Jean-Paul Sartre)


                                                                             Por Ana Idalina Carvalho Nunes*

Resultado de imagem para wikimedia commons sartre
Archivo del diario Clarín. Publicado em 1983 na revista dominical del periodico ilustrando um artigo sobre o poeta, 
en Buenos Aires, Argentina. Autor  desconhecido. Fonte: Wikimedia Commons.



 Sartre dá início a este capítulo de O ser e o nada falando do argumento utilizado pelo senso comum, que defende a ideia de que o homem é impotente, já que não tem liberdade para modificar a si mesmo, para escapar ao destino de sua classe, de sua nação, de sua família, nem para construir sua riqueza, para dominar seus mais primitivos apetites ou seus hábitos mais insignificantes. O homem nasce operário, francês, com uma sífilis hereditária ou tuberculose; e as adversidades da vida se apresentam de tal forma que são necessários anos de paciência para se conseguir resultados mínimos. A impressão que se tem é a de que o homem parece “ser feito” pelo clima e pela terra, pela raça e pela classe, pela língua, pela história da coletividade da qual participa, pela hereditariedade, pelas circunstâncias individuais de sua infância, pelos hábitos adquiridos, pelos grandes e pequenos acontecimentos de sua vida.  


Tal argumento, entretanto, nunca perturbou os filósofos defensores da ideia de que o homem é livre. Descartes, o primeiro desses pensadores, reconhecia que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a nós mesmos do que a sorte" (1997, p. 593) e afirmava que não se pode levar em consideração grande parte dos fatos apresentados pelos deterministas. A  adversidade das coisas, segundo este filósofo,  não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, já que é através do próprio homem, a partir do seu posicionamento prévio acerca de um fim, de uma intencionalidade, que surge o coeficiente de adversidade. Sartre apresenta o exemplo de um rochedo que demonstra profunda resistência, quando minha intenção é removê-lo, mas que acaba tornando-se uma ajuda  preciosa, a partir do momento em que intenciono  escalá-lo para contemplar a paisagem. Se for analisado sob o aspecto do que é, em si mesmo, este rochedo, torna-se possível perceber que ele é neutro, que está ali, esperando ser iluminado por um fim,  de modo a se manifestar como adversário ou auxiliar. Desta forma, ainda que as coisas em bruto limitem, desde a origem, a liberdade de ação do homem , é a liberdade deste homem que constitui a moldura, a técnica e os fins a partir dos quais as coisas vão se manifestar como limites. Mesmo que o rochedo se revele como "muito difícil de escalar" e o homem toma a decisão de  desistir da escalada, é possível observar  que o rochedo só se revela como obstáculo por ter sido originariamente captado como "escalável"; portanto, é liberdade de cada um que constitui os limites que irá encontrar depois (1997, p. 595).

Existem alguns fatores que o homem não pode escolher já que lhe são dados - a isto Sartre denomina de facticidade. Por exemplo, a livre decisão da minha consciência não me faz ser natural da França, se nasci no Brasil. A facticidade é o que faz com que o mundo tente resistir à liberdade. Existem cinco situações geradas pelo encontro da facticidade com a condição de liberdade ontológica do homem que, segundo Sartre, são denominadas de: “meu lugar”, “meu passado”, “meus arredores”, “meu próximo” e “minha morte”. Meu lugar é o  lugar onde moro, mas também é  a disposição e a ordem dos objetos  que me aparecem cotidianamente: mesa, janela, rua, mar, etc.  Este lugar me foi destinado pela minha liberdade e eu só tenho a possibilidade de ocupar esse lugar por causa do lugar que eu ocupei anteriormente, só tenho a oportunidade de ocupar esse lugar, a partir do momento em que sigo caminhos traçados pelos próprios objetos. (1997, p.603). É o lugar que ocupo agora que poderá me levar a outro lugar e a outro respectivamente,  até  que chegue àquele que já não remete a nada de mim: o lugar do meu nascimento. Segundo Sartre, é a partir de um lugar que ocupo, que passa a ser oferecida à minha escolha uma infinidade de outros lugares, como também uma infinidade é a partir do lugar que ocupo que uma infinidade de lugares me é negada. Vale ressaltar que, além disso, os objetos podem me trazer alguma coisa que não escolhi.  Neste contexto, o espaço geométrico, isto é, a pura reciprocidade das relações espaciais, é puro nada. A minha única localização concreta é a constituição do meu lugar como centro, para o qual são calculadas as distâncias entre o objeto e mim, sem reciprocidade. (1997, p.604). Foi única e exclusivamente no ato através do qual a liberdade encontrou a facticidade e a apreendeu como lugar, que este lugar  passou a se manifestar como obstáculo à realização dos meus desejos (1997, p. 608). Quanto ao passado, pode-se dizer que, se a liberdade é escolha de um fim em função do passado, da mesma forma,  o passado só é aquilo que é em relação ao fim escolhido. E o conjunto das camadas de passado vivo, passado semimorto, sobrevivências, ambiguidades, antinomias, tudo isso é organizado através da unidade do meu projeto. Meus arredores, meu próximo.  

Apresentando que ele chama de “situação-limite” - a morte, Sartre a considera como aquilo que vem do exterior e finaliza todas as possibilidades do homem: “assim, a morte não é minha possibilidade, no sentido anteriormente definido; é situação-limite, como avesso escolhido e fugidiço de minha escolha... Não sou 'livre para morrer', mas sou um livre mortal” (1997, p. 670-671). Apenas diante desta situação limite (a morte) é que a liberdade se desmorona. Embora Sartre considere “o absurdo da morte” como algo que foge às possibilidades humanas, ele reconhece o poder aniquilador que ela comporta - de sabotar a liberdade do homem e pôr fim a todas as suas possibilidades.  Enfim, é a partir da escolha de um projeto existencial, a partir do sentido que o homem confere ao mundo, que ele pode falar de lugar, passado, etc.

A abordagem que Jean-Paul Sartre faz de “situação” não leva em consideração o condicionamento histórico do homem no engendramento de sua liberdade. O conceito fundamental em O Ser e o Nada é o de nadificação; o para-si se manifesta como poder nadificador, pois o nada habita sua própria raiz. Sartre chama de “situação” as circunstâncias sob as quais o Para-si concebe sua liberdade. O filósofo destaca o caráter paradoxal da liberdade, ao defender que só há liberdade em situação e que só há situação mediante a liberdade. Mas ele não exime o homem da responsabilidade pelos seus atos. De acordo com Sartre,

“A consequência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra 'responsabilidade' em seu sentido corriqueiro de 'consciência de ser o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto'” (1997, p. 678).

 A responsabilidade aparece como um fardo que o homem tem de carregar sobre os ombros, uma vez que é o próprio homem quem confere um sentido ao seu ser no mundo. Através das múltiplas escolhas que faz, só lhe resta responder por todos os seus atos no final. Ao considerar o homem como o único responsável pelo seu modo de ser, Sartre irá reconhecer o aspecto “opressivo” da liberdade. Tal opressão se daria pelo fato de o Para-si não ser o seu próprio fundamento e, no entanto, dever responder pelo seu modo de ser escolhido. O homem é abandonado no mundo, não no sentido de permanecer desamparado e passivo em um universo hostil, mas no sentido de que ele se vê repentinamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual é inteiramente responsável, do qual não consegue se livrar, nem ao menos por um instante, já que é responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-se das responsabilidades (1997, p. 680).


Além de tudo isso, a noção sartreana de responsabilidade tem ainda um caráter universal: uma vez que é o homem quem confere sentido ao mundo e aos seus projetos, pode-se dizer que é ele quem deve responder pelo seu mundo. Ao tratar da experiência da Segunda Guerra mundial, o filósofo reforça sua tese de que devemos responder pelo nosso mundo: “se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à minha imagem e eu a mereço” (1997, p. 678). O que Sartre parece pretender enfatizar com a sua noção de responsabilidade é que as ações ou omissões humanas não podem ser concebidas sob uma fria neutralidade. O mundo não permanece ileso diante da ação do homem, diante das escolhas e dos projetos que assume livremente. Em resumo: não podemos ficar “em cima do muro”.

Desde o momento em que o indivíduo nasce, começa a se construir como um existente; e este indivíduo prossegue se fazendo, durante toda a sua existência,  através das ações que pratica. É assim que ele constrói a sua “história de vida”, que só tem o seu final no instante em que morre. Depois de morto, o indivíduo se torna prisioneiro dos vivos, os outros se apoderam de sua vida. Ele permanece presente como objeto de análises, comentários, permanece presente na lembrança dos vivos – entretanto, já não pode se defender, não pode retrucar diante de algo que dele falem. Para Sartre, a morte não pertence à estrutura do para-si (consciência), ou seja, a morte nada tem de humana, muito menos participa de nossa existência. A morte não é um possível escolhido pelo homem e, se o projeto individual implica em  superar a situação dada, visando um inexistente futuro, isso significa que o para-si é uma “espera de esperas que, por sua vez, esperam esperas” (1997, p. 659). A morte é inesperada, surpreendente e imprevisível. De acordo com Sartre, toda a significação que atribuímos à situação e aos atos, provém dos fins projetados; neste caso, se a morte não tem futuro, ela não pode ser o sentido da nossa vida. Muito pelo contrário – a morte retira da vida toda sua significação. Mesmo se considerarmos que a morte é um limite à liberdade, esta consideração não se aplica à consciência, pois, com a chegada da morte - juntamente com o juízo do outro - a consciência (para-si) não mais existirá e não haverá mais liberdade a ser limitada no mundo. Além do mais, só é possível experimentar a morte no outro, visto que a própria morte requer o indivíduo vivo para presenciá-la. Conforme diz Sartre, “ela é o triunfo do ponto de vista do outro sobre o ponto de vista que sou sobre mim mesmo” (1997, p. 662), ou seja, a morte faz com que tudo aquilo que o indivíduo fez durante sua vida, passe a ficar sob o domínio dos vivos. Entretanto, “não sou ‘livre para morrer’, mas sou um livre mortal” (1997, p. 671).

A partir da leitura do texto, o que se pode concluir é que, se a liberdade vem ao mundo a partir da existência do homem, e se está situada num mundo que oferece obstáculos que restringem a liberdade do indivíduo, então a morte é a situação que não se espera nem se experiencia, mas que aprisiona o homem na eternidade, atribuindo juízos ao que deixou para trás. Aquilo que o indivíduo realizou, o seu passado, ou aquilo que ele fez de si mesmo, permanecerá aprisionado pelo juízo do outro. E se podemos concluir que a morte não faz parte da vida do homem, concluiremos igualmente que ela também não pode ser considerada um obstáculo, já que no momento em que a consciência deixa de existir,  também a liberdade não mais existe,  pois a liberdade vem ao mundo através da consciência e, por conseguinte, a liberdade não é finalizada pela morte.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

SILVA, Paulo César Gondim da. O conceito de liberdade em “O ser e o nada” de Jean-Paul Sartre. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010.

WELTMAN, Michelle. Ontologia fenomenológica e liberdade em “O ser e o nada” de Jean-Paul Sartre. Dissertação de mestrado defendida na Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de  São Paulo, 2009.

 * Trabalho produzido durante a especialização em Filosofia, Cultura e Sociedade, apresentado ao prof. Dr. Luciano Donizetti (UFJF, 2013)

CITAR ESTE ARTIGO DA SEGUINTE FORMA:

NUNES, A. I. C. Liberdade e facticidade: a situação. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 23 jun. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/liberdade-e-facticidade-situacao-sobre.html . Acesso em (data do acesso).

sexta-feira, 21 de junho de 2019

O SER HUMANO E O CONHECIMENTO EM ARISTÓTELES

Recorte feito na obra do renascentista italiano, Rafael Sanzio, intitulada “Scuola di Atene”.


            Embora tenha iniciado seus passos na Filosofia sob a influência de Platão,  Aristóteles criou uma Filosofia diferente, fundada na vida terrena,  tendo na felicidade  um bem a que o homem tem direito em vida – e não somente depois da morte do corpo, conforme a doutrina de Platão. Aliás, são vários os pontos em que Aristóteles discorda de Sócrates e de Platão, a começar pela ideia de alma que, para Aristóteles, é a atualidade primeira de um corpo orgânico que tem vida em potência, é a essência do corpo. Para Aristóteles, o homem é uno: corpo e alma são  uma só coisa e constituem o vivente.  A alma não existe sem o corpo, mas também não é o próprio corpo, mas algo do corpo. Para Platão, pelo contrário, a verdadeira felicidade só é possível no mundo das ideias, no Hades, sendo o corpo uma espécie de prisão, um castigo que impede o homem de atingir a verdade. Aristóteles, pela sua visão una do corpo e alma, apresenta uma filosofia que, ao invés de distanciar o homem da vida social, da vida em família, aproxima-o das situações comuns do cotidiano,  permite sua experiência através dos sentidos, tirando do corpo o estigma de “coisa ruim”. Diferentemente de Sócrates e Platão, o homem para Aristóteles é "um animal social”, o que faz com que a  união entre as pessoas  - seja por laços de amizade, de amor ou de família - seja vista como coisa natural, porque o homem é um ser  que necessita de outras pessoas para alcançar a sua plenitude.
            Aristóteles afirma, acerca do conhecimento, que este sem a experiência leva ao erro, ressaltando que,  muitas vezes,  aquele que tem a experiência é  mais capaz de acertar do que aquele que detem apenas o conhecimento teórico. É claro que ele complementa seu raciocínio explicando o porquê de o saber ser superior à experiência: por ser capaz de apresentar as causas. Entretanto, a forma como aborda a importância da experiência,  especialmente nos dois trechos a seguir:

 1º) "Todos os homens tendem por natureza a saber. É indício disto o gosto pelas   sensações, pois estas, seu proveito à parte, agradam por si mesmas" (onde aponta o gosto pelas sensações como indício da natureza humana que busca o saber);

2º) a ciência e a arte são nos homens o resultado da experiência, pois a  experiência fez a arte e a inexperiência o acaso” (trecho onde Aristóteles aponta a experiência como causa da arte e da ciência)  

como também a maneira como aborda a relação  entre sensação e experiência,  leva a inferir que ele pode querer dizer que o homem precisa experimentar a vida e sentir os sentidos, para adquirir efetivamente o saber. E esse “experimentar a vida”, através das sensações, dá margem para uma ampla interpretação. Para experimentar a vida, porém,  Aristóteles recomenda que é preciso saber a medida certa de tudo, do uso dos sentidos, da escolha dos caminhos que se pretende trilhar para atingir a felicidade. E na busca da felicidade muitos se perdem. Os mais grosseiros buscam-na nos prazeres mundanos, os homens mais refinados buscam-na nas honras - que são o objetivo da vida política, mas os sábios buscam-na na virtude. E o que é a virtude? Para Aristóteles, “a felicidade é a virtude da melhor parte de nós”, e o intelecto é essa melhor parte, o que nos leva a concluir que a felicidade perfeita é aquela que se baseia no conhecimento.
            Alguns podem até mesmo alegar que os ignorantes, as pessoas muito simples que não têm conhecimento sequer de si mesmos, são comumente mais felizes, justamente por não terem noção do mundo que as rodeia. Mas é uma tese frágil que pode ser facilmente desmontada, se observarmos o pânico das pessoas ignorantes diante do desconhecido, de catástrofes, de imprevistos, além da necessidade que tais pessoas têm de um ponto de apoio – seja ele a religião, a tradição, um modelo de comportamento que as oriente.  A felicidade não é um estado permanente de alegria, mas a clareza de consciência que o homem tem de si mesmo  diante do misterioso universo, da  imprevisibilidade da vida, da ausência de verdades absolutas e de paradigmas norteadores para a existência humana. Sendo assim, o homem que busca constantemente o conhecimento, vai adquirindo segurança para caminhar sem a necessidade de saber o que existe adiante, mas caminhar orientado pela vontade de saber. Por isso ele não teme, porque o tesouro do saber “por si” vale a incerteza do caminho.
          O intelecto é o que nos aproxima do sublime, do imortal, e esta é uma razão mais que suficiente para que o homem viva segundo o intelecto, baseando sua vida no conhecimento, sendo o melhor que consiga ser. Concordo com o pensamento de Aristóteles porque, se os homens tendem - por natureza- a saber, a busca do conhecimento é a sua verdadeira identidade. E essa busca de conhecimento, quando se dá sem outra finalidade, a não ser o “sab*er por si”, é prazerosa, traz bem-estar.    Da mesma forma como um rio não atinge a plenitude se desviarmos o curso de suas águas, da mesma maneira que uma semente tem dificuldade de germinar sob uma pedra, também o homem não consegue ser pleno desviado de sua identidade. E se o intelecto é a melhor parte do homem e a felicidade é a virtude da melhor parte de cada um de nós, então – fica claro - a felicidade é a virtude do intelecto.          
             Portanto, felizes os que saem da escuridão  – mesmo quando a escuridão parece um bem e os protege dos monstros que ainda não conhecem – porque é na luz que o homem adquire o comando de sua própria vida, a coragem para caminhar incansavelmente, questionando e buscando soluções para as suas dúvidas. Ainda que não encontre as respostas que espera, é no árduo caminho da pergunta que o intelecto produz os milagres da ciência e da evolução humana. Filosofia é o saber por si.

*Texto produzido durante o 1º período de Filosofia (UFJF, 2010).  Trabalho da disciplina de Antropologia Filosófica I, apresentado ao professor Juarez Sofiste, pela aluna Ana Idalina Carvalho Nunes.

COMO CITAR (de acordo com as normas da ABNT): 


NUNES, A. I. C. O ser humano e o conhecimento em Aristóteles. Artigos de Filosofia. Juiz de fora, 21 jun. 2019. Disp. em: artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/o-ser-humano-e-o-conhecimento-em.html . Acesso em: (data do acesso).






A SÍNTESE DO CORPO PRÓPRIO - uma breve análise do capítulo quarto de "Fenomenologia da Percepção" de Maurice Merleau-Ponty


                                                                       Por Ana Idalina Carvalho Nunes*

Photograph of Maurice Merleau-Ponty}} |Source=http://www.philosophical-investigations.org/Users/PerigGouanvic/
Merleau-Ponty_and_the_Post-Modern_Non-Self |Author=http://www.philosophical-investigations.org/Users/PerigGouan

            Merleau-Ponty, no quarto capítulo de “Fenomenologia da Percepção”, fala do corpo que não é objeto; um corpo que é no tempo, no espaço e no movimento, sem ser a somatória de partes. É uma “síntese corporal”, ou seja, é um modo de unidade que não está sujeito a uma lei externa ao corpo. Esta síntese corporal torna possível a percepção daquilo que é oculto nos objetos e no próprio corpo. De acordo com Merleau-Ponty, na página 207, “Não traduzo os “dados do tocar” para “a linguagem da visão” ou inversamente; não reúno as partes de meu corpo uma a uma; essa tradução e essa reunião estão feitas de uma vez por todas em mim: elas são meu próprio corpo.” A unidade no corpo próprio quer dizer, com isso, afirmar que o corpo é um feixe de relações de existência, de sentidos que são ressignificados a todo momento, sendo que esta significação e também os sentidos novos que surgem dessa atualização existencial não são resultantes da acumulação de informações, mas de uma reconfiguração e atribuição de sentido dessas informações.
            Então, o visível e o invisível se relacionam numa reciprocidade visceral, não numa espécie de acumulação ou soma de partes objetivas e materiais, nem numa síntese abstrata de consciência transcendental. A linguagem poética não nos leva às representações absorvidas de sua concretude sensível, mas ao próprio movimento de um corpo que se faz pensamento e de um pensamento que se faz corpo. Merleau-Ponty, na página 209, segue com seu raciocínio, explicando que, da mesma forma como a fala não é significada só pelas palavras, mas também pelo sotaque, tom, gestos e fisionomia, assim também a poesia, sendo narrativa e significante, é também, essencialmente, uma modulação da existência. “Ela se distingue do grito porque o grito utiliza nosso corpo tal como a natureza o deu a nós, quer dizer, pobre em meios de expressão, enquanto o poema utiliza a linguagem, e mesmo uma linguagem particular, de forma que a modulação existencial, em lugar de dissipar-se no instante mesmo em que se exprime, encontra no aparato poético o meio de eternizar-se”. O poema, como qualquer obra de arte, existe como coisa e não subsiste pra sempre à maneira de uma verdade. De acordo com Merleau-Ponty, existe um entrelaçamento e, neste entrelaçamento não existe sentido no dualismo entre o corpo e a consciência, intelecto e percepção, sentido e forma expressiva. E, da mesma maneira que um poema existe como uma forma encarnada no contexto de sua expressividade, o nosso corpo existe e se exprime na sua esfera mais vital.
            Em outras palavras, é como  se houvesse a consciência de uma unidade de existência, em vez de uma “soma de sensações” que proporcionaria somente o saber em fragmentos, uma soma de partes do corpo. Na verdade, o saber que temos do nosso corpo é uma totalidade: o meu corpo inteiro se polariza numa ação e, para que isso aconteça,  é necessário que eu mova vários músculos a um mesmo tempo,  sem me preocupar em pensar  qual músculo eu movi. Há um entrelaçamento das diferentes partes do corpo.
            Finalizando, Merleau-Ponty  compara, na página 112,  o olhar com a bengala de um cego: “Com o olhar, dispomos de um instrumento natural comparável à bengala do cego. O olhar obtém mais ou menos da coisas segundo a maneira pela qual ele as interroga, pela qual ele desliza ou se apóia nelas.” E conclui que o nosso corpo não é um objeto do pensamento, mas um “conjunto de significações já vividas que caminha para o seu equilíbrio” .

 * Trabalho da disciplina de Antropologia Filosófica II, apresentada ao professor Juarez Gomes Sofiste, pela aluna Ana Idalina Carvalho Nunes (Graduação em Filosofia UFJF, jun. 2011)

COMO CITAR (de acordo com as regras da ABNT)


NUNES, A. I. C. O ser humano e o conhecimento em Aristóteles. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 21 jun. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/a-sintese-do-corpo-proprio-uma-breve.html . Acesso em: (data do acesso).







quarta-feira, 19 de junho de 2019

O QUE É A ETNOMETODOLOGIA?

por Ana Idalina Carvalho Nunes

Harold Garfinkel. Disp. em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Harold_Garfinkel.jpg

Trabalho da disciplina"Retórica, Racionalidade e ação: modelos linguísticos", apresentado ao prof. dr. Raul Francisco Magalhães, durante o mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGCSO/UFJF, 2016)


1. Introdução


          O presente artigo tem como objetivo lançar um olhar sobre a etnometodologia, abordagem sociológica qualitativa criada por Harold Garfinkel na década de 1960 para analisar os fenômenos sociais que envolvem a fala e a ação. A estrutura do texto trará, na ordem exata aqui apresentada, o contexto histórico do surgimento da etnometodologia, os conceitos e elementos constitutivos da teoria e a sua aplicabilidade no campo da pesquisa científica.
          Inicialmente, é importante considerar a obra de Garfinkel que simboliza o marco inicial da etnometodologia na sociologia americana é Stuties in Ethnomethodolgy, publicada em 1967. Trata-se de um livro composto por oito capítulos que trazem estudos exploratórios onde o autor tenta situar o ponto mais firme de sua trajetória intelectual, expondo para a sociologia um fenômeno que, embora pareça óbvio demais, é ignorado nas reflexões dos cientistas sociais: a realização cotidiana da vida social. De acordo com o prefácio da edição brasileira do livro de Garfinkel,

O simples fato de as pessoas se cumprimentarem, seguirem regras de trânsito, ou confiarem em uma instrução dada por um professor implica estruturas de ação que são postas em movimento, sem que ninguém se dê conta de sua complexidade e da suposição de que tais regras estão igualmente operantes nas mentes e corpos dos outros. Se essas ideias nos parecem normais dentro do escopo geral de certa teoria social contemporânea, não se pode dizer o mesmo ao final dos anos 1960, quando Garfinkel desafiava o pensamento sistêmico dominante na sociologia, aquele que partia do pressuposto de que os indivíduos agem por regras que são internalizadas (GARFINKEL,2014, p.8)
           
          Segundo a etnometodologia, apesar do impacto do caráter imperativo das regras sociais sobre os indivíduos, para analisar a vida social é preciso avaliar o contexto em que as ações e as falas ocorrem na vida cotidiana. Partindo desse princípio, a etnometodologia apresenta uma crítica ao modo como são realizadas as pesquisas quantitativas - que focam no registro de dados, deixando em segundo plano o processo como esses dados são constituídos - traz a hipótese de que o resultado obtido na pesquisa sociológica da escola tradicional não consegue traçar um retrato fiel da realidade, já que não apresenta o modo como essa realidade foi construída. Através dessa crítica, a etnometodologia rompe com a sociologia tradicional, apontando que todos os indivíduos podem ser considerados como sociólogos, na prática, e que os grupos sociais aos quais esses indivíduos se integram são capazes de compreender, descrever, comentar e analisar a si mesmos. Partindo dessa premissa, a etnometologia utiliza-se dos etnométodos, para interpretar e colocar em ação na rotina das suas atividades do dia a dia as práticas que possam lhes permitir o reconhecimento do próprio mundo. Esses etnométodos contribuem para que seu mundo se torne familiar e possibilitam que as pessoas possam construí-lo cotidianamente. Essa descrição, interpretação e construção do mundo social pelas pessoas é o objeto de estudo da etnometodologia . Privilegiando a abordagem microssociológica, ela lança luz sobre as interpretações, trazendo para o centro das discussões o ator, que passa a ser visto como autor, já que ele constrói, a partir das interações sociais, o seu mundo social. O entendimento de mundo que esse indivíduo apresenta é o centro da pesquisa etnometodológica.

2. Contextualização da etnometodologia de Harold Garfinkel

          Harold Garfinkel recebeu influência direta de dois nomes, em especial, no desenvolvimento de suas teorias: Talkott Parsons e Alfred Schütz. Do primeiro, ele foi aluno no Departamento de Relações Sociais na Universidade de Harvard. Entretanto, embora tenha iniciado sua carreira sob a supervisão de seu mestre, Garfinkel recebeu uma maior influência de Schütz, cujas teorias lhe serviram como ponto de referência para os seus estudos posteriores. Garfinkel foi professor emérito na Universidade da Califórnia, Los Angeles até a sua morte, em 21 de abril de 2011.
           É importante destacar que, no período do surgimento da etnometodologia, o mundo todo, especialmente a sociedade dos Estados Unidos, passava por grandes transformações em sua estrutura, com a emergência de discussões ideológicas e políticas envolvendo questões sociais e econômicas – levantando questionamentos sobre a posição do indivíduo na sociedade, que passava a ser visto como livre para mudar a direção do cenário social da época. Esse contexto justifica a preocupação de Garfinkel em estudar as ações e as falas das pessoas comuns e utilizar tal análise para compreender a organização social. 
           A quase totalidade da produção científica de Garfinkel foi publicada em artigos e relatórios que se transformaram, posteriormente, em capítulos de livros. Assim, para compreender o desenvolvimento de suas ideias, é preciso contextualizá-las no tempo. “Vendo sociologicamente”, por exemplo, publicado em 2006, na verdade foi produzido dois anos antes de sua ida para Harvard e consistia num esboço que fizera de seu projeto da dissertação. Outro dos seus artigos, intitulado “Rumo a uma teoria sociológica da informação”, igualmente foi escrito no período em que Garfinkel era estudante. Serviu-lhe, neste artigo, como base, um relatório escrito conjuntamente com o Projeto de Comportamento Organizacional na Universidade de Princeton, em 1952. “Estudos em Etnometodologia” reuniu alguns dos primeiros estudos de Garfinkel sobre o assunto. E esse processo de reunir textos escritos anteriormente, publicados ou não, se deu em outras obras de Garfinkel que surgiram depois. 
           É necessário ainda, para compreender as ideias de Garfinkel, lançar luz sobre as teorias de seu mestre Talcott Parsons e de Alfred Schütz , o criador da fenomenologia social, os dois nomes que exerceram a mais forte influência sobre ele na construção de sua teoria. Discordante das ideias de Parsons, Garfinkel buscou desenvolver argumentos que pudessem fundamentar suas críticas, especialmente no referente à teoria de “dinâmica social” de seu mestre. O grande questionamento de Garfinkel no referente às ideias de Parsons se referiam aos paradigmas normativos da ação humana que, para seu mestre, levavam em conta, prioritariamente, a regulação apriorística das atividades da conduta humana. A dúvida de Garfinkel consistia em identificar qual racionalidade poderia ser imprescindível para a conduta humana, dentro no pensamento de Parsons que, tendo em suas ideias a marca do pensamento neokantiano, acreditava na neutralidade quase total da cognoscitividade na
conduta dos indivíduos. Para Parsons, o que servia de norte para as pessoas seria uma acentuada racionalidade científica, através da qual as suas ações seriam definidas e definiriam também as regras de conduta dentro da sociedade. Dentro desse quadro, as motivações dos atores se mostravam integrados em paradigmas normativos reguladores das ações sociais, existia um tipo de sistema que se mostrava interiorizado e governava ações e pensamentos dos indivíduos. 
           Na teoria de Parsons, o paradigma normativo é visto como base da ação social, numa dinâmica em que o ator se apresenta como indivíduo não reflexivo e incapaz de analisar sua relação de dependência com as normas sociais, se submetendo a essas regras que, por sua vez, tornam-se determinantes na sua conduta. Garfinkel, ao contrário de Parsons, constrói sua teoria, partindo do pressuposto de que a interação entre o ator e a situação não se funda em normas predeterminadas nem a conteúdos culturais. De acordo com ele, a interação é formada por processos de interpretação, e a base da ação social é o paradigma interpretativo, que tem na reflexividade a condição primeira para o entendimento da ordem social. Ou seja, as normas existem, estão presentes na sociedade e exercem influência sobre o indivíduo – mas o indivíduo interage com essas normas e, a partir dessa interação, ele as interpreta e as modifica para se ajustar a elas, atuando como sujeito que constrói a própria realidade. 
        Enquanto Parsons vê a racionalidade científica como norteadora da conduta humana, para Garfinkel , o que a guia é a realidade prática e o conhecimento de senso comum. Em outras palavras, o conhecimento de senso comum, para ele, consiste no elemento básico para se compreender a ação social, e a interpretação dos indivíduos está no alicerce desse elemento. Garfinkel vê na teoria da ação social de Parsons um grave problema: os indivíduos ali definidos teriam um juízo adormecido, seriam meros reprodutores das estruturas sociais normativas, dentro de um determinismo absoluto. Em resumo, para desenvolver sua crítica, Garfinkel buscou substituir o paradigma positivista de Parsons por um modelo de interpretação da ação humana, considerando o papel da linguagem e da intersubjetividade na conduta social (HERITAGE, 1999, p. 356-357).
          No referente às influências recebidas de Alfred Schütz, pode-se perceber que Garfinkel trouxe para a sua etnometodologia a ideia de reciprocidade das perspectivas. De acordo com essa teoria, o mundo social é o espaço da vida cotidiana marcado pela intersubjetividade e, mesmo diante das diferenças que marcam a vivência de cada indivíduo (já que cada um tem a própria maneira de interpretar a vida), e ainda sabendo que a posição que cada indivíduo ocupa na sociedade lhe permite apreender e interpretar a realidade de uma forma diferenciada, pode-se afirmar, sem dúvida, que todas as experiências são idênticas na prática.
          Citando como exemplo o ambiente escolar, analisando a posição que ocupam a diretora, a professora e os alunos, é possível perceber que cada qual vê as situações de uma maneira diferente e que a apreensão e interpretação de um determinado fato vai estar intrinsecamente ligada à posição que cada um ocupa. Isso torna claro o fato de que a percepção é subjetiva. Contudo, ainda que tais visões sejam diferentes, existe um tipo de conhecimento do real que todos compartilham através da empatia (buscando se colocar no lugar do outro para saber o que sentem e pensam) e também através de um tipo de idealização sobre as razões pelas quais professora, diretora e alunos estejam presentes na escola – os atores idealizam que o motivo que leva todos à escola é o mesmo. É através desse ajuste que se torna possível a interação necessária para a construção do mundo social que, desta forma, é constituído intersubjetivamente. Vale ressaltar que esse processo de constituição subjetiva do mundo social sofre constantes atualizações, já que a identificação entre os indivíduos dos grupos sociais é renovada de maneira constante. Através da continuidade desse processo é que os objetos do mundo social se tornam familiares e são, desta forma, mantidos sob uma forma tipificada que caracteriza também como tipificado o conhecimento ali construído, diante do qual os agentes conseguem analisar o seu mundo social, ainda que de maneira aproximada e aberta a revisões – o que não prejudica a sua utilização como paradigma para que se organize a ação. É importante, no entanto, destacar que a teoria etnometodológica de Garfinkel não é o desenvolvimento mais amplo da Fenomenologia Social de Schütz. A etnometodologia apenas se apropriou de alguns pressupostos da fenomenologia para desenvolver suas teorias acerca da compreensão da realidade por meio dos raciocínios da prática cotidiana, utilizando-se da intersubjetividade. Entre essas apropriações, podemos citar seis elementos:

i) as pressuposições de se pôr entre parênteses os fenômenos e as teorias sobre o mundo social, mantendo com isso uma atitude de indiferença etnometodológica para com elas; ii) a requisição de uma fidelidade para com o fenômeno em estudo; iii) a aceitação das qualidades humanas de pensamento, razão, emoções e agregados sensíveis, planejamento, julgamentos, e conhecimentos presentes nas ações humanas; iv) rejeições a prescritividades e pré-formulações de métodos e estratégias de análise metodológicas, diante da singularidade de cada fenômeno social abordado; v) cuidado na manutenção dos aspectos fidedignos das descrições dos métodos práticos dos membros nos seus atos de falar e de agir no mundo cotidiano; e vi) abandono de monismos causais nas explanações analíticas a que se prestam seus estudos (PSATHAS, 2004 apud OLIVEIRA;MONTENEGRO, 2012, p. 133).

          Convém ainda lembrar, a partir da observação dos elementos acima apresentados, que a epoché (colocação em suspenso) das ideias acerca do mundo social favorece ao pesquisador uma maior aproximação da realidade em sua essência, já que o mundo, conforme aponta Maurice Merleau-Ponty no prefácio do seu “Fenomenologia da percepção”, “o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY,1999, p. 14). Ou seja, para possibilitar uma maior aproximação da realidade enquanto construção social, é indispensável a observação, tanto do conhecimento do senso comum como das razões práticas dos indivíduos dentro dos grupos sociais.
          De acordo com Garfinkel, (2015, pp. 55-56), compartilhar conhecimento sobre a  estrutura social não leva ao entendimento comum. Esse entendimento consiste “no caráter obrigatório de ações realizadas conforme as expectativas da vida cotidiana como uma moralidade”. Segundo ele,

O conhecimento de senso comum dos fatos da vida social, para os membros da sociedade, é o conhecimento institucionalizado do mundo real. Não só o conhecimento de senso comum retrata uma sociedade real para os membros, mas, à maneira de uma profecia que se auto-cumpre, as características da sociedade real são produzidas pela obediência motivada de uma pessoa a essas expectativas contextuais. Daí, a estabilidade das ações concertadas deveria variar diretamente em função de quaisquer que fossem as condições reais de organização social que garantam a adesão motivada de uma pessoa a essa textura contextual de relevâncias como uma ordem legítima de crenças sobre a vida em uma sociedade vista “do interior” da sociedade. Visto do ponto de vista da pessoa, seu comprometimento com a obediência motivada consiste em sua compreensão e aceitação dos “fatos naturais da vida em sociedade” (GARFINKEL, 2015, pp. 55-56)

           Esse conhecimento do senso comum, aliado às razões práticas dos agentes sociais legitimam a realidade social, já que ela traz em si o aspecto objetivo e o intersubjetivo que a envolvem de uma quase materialidade que cria a possibilidade do convívio entre os indivíduos através da criação de uma rede de significados comuns criados a partir do conhecimento dos indivíduos e nos paradigmas do mundo social, favorecendo, por sua vez,  que ocorra a interação intersubjetiva entre os indivíduos que participam do mundo.
         Também ligado à ideia da constituição do mundo social como uma interação mútua entre o plano objetivo e o pano subjetivo, onde os indivíduos se posicionam como atores que constroem o seu mundo social, está o Interacionismo Simbólico. Sua influência, especialmente através de Herbert Mead, se constitui, ao lado da Fenomenologia Social de Husserl, como um dos pilares da Etnometodologia de Garfinkel, especificamente no que se refere à significação das ações e falas dos atores em relações de interação. De acordo com Coulon, mesmo quando sob a influência de normas estabelecidas socialmente, essas ações e falas “nunca são definidas unilateralmente, muito menos reificadas objetivamente, mas sempre são sustentadas comportamentalmente em processos de negociação de significados” (COULON, 1995 apud OLIVEIRA;MONTENEGRO, 2012, p. 134).
  A diferença entre a abordagem interacionista e a etnometodológica consiste, especialmente, no ponto do interacionismo que trata da “atitude natural” diante dos fenômenos. De acordo com esta abordagem, é necessário que o pesquisador deve estar presente fisicamente e presenciar os fenômenos, sob o risco de conseguir registrar apenas “resíduos” da ação social. Entretanto, não raro tal atitude leva o pesquisador a se envolver e se identificar totalmente com os membros do grupo, passando a assumir uma “atitude natural” frente aos fenômenos.
A etnometodologia diverge do interacionismo por discordar dessa “atitude natural”. De acordo com Coulon,

Com efeito para praticar a etnometodologia, devemos adotar um certo estado de espírito, deixarmo-nos penetrar pelo estranhamento das coisas e acontecimentos que nos rodeiam, tentar subtrairmo-nos à força da, atitude natural‟ que apresenta uma tendência constante para levar a melhor” (COULON, 1995 apud FIGUEIREDO, 1998)

          Ou seja, a proposta da etnometodologia é justamente deixar de lado a familiaridade na relação com os atores sociais, sob a recomendação de que a identificação total com os membros acaba levando à perda do senso crítico de que o pesquisador necessita para interpretar a maneira como os atores sociais constroem a realidade. A “atitude natural”, de acordo com a etnometodologia, acaba impregnando a percepção do pesquisador, prejudicando a neutralidade de suas conclusões.

3. Conceitos e elementos constitutivos da teoria etnometodoló-gica

           Constituindo-se como a pesquisa empírica dos métodos de que as pessoas se utilizam para dar sentido e agir cotidianamente, interpretando as crenças e a conduta do senso comum como imprescindíveis para a construção da realidade social, a abordagem etnometodológica apresenta, como conceitos-chave: prática ou realização, indicialidade, reflexividade, relatabilidade, e a noção de membro, que serão explicados a seguir. 

          3.1. Por “Prática ou Realização”, a etnometodologia quer apresentar o contexto onde se constrói a realidade social. Essa realidade é produzida na prática cotidiana, por meio da interação entre os atores; a partir dessas operações micro é que acontecem as grandes  mudanças sociais, num plano macro. De acordo com Garfinkel (2012, p. 114) “seus praticantes insistem que as práticas da análise construtiva são realizações dos membros”. E essa ideia de realização adotada por ele na sua etnometodologia se refere à construção continuada de práticas pelos agentes sociais. Trata-se de um processo permanente e contínuo, onde as regras e as normas são vistas como construções capazes de definir e tornar claros os raciocínios sociais práticos, bem como os métodos que os agentes sociais usam na realização de suas interações sociais que dependem, por sua vez, da maneira como eles interpretam o mundo.

           3.2. Por “Indicialidade” entende-se o caráter incompleto de que a palavra é dotada, de forma que só é possível compreender seu significado a partir da consideração do contexto no qual ela está situada. Pode-se afirmar que todas as expressões utilizadas pelos indivíduos nas relações de interação estão permeadas por características indiciais (ou indexicais), e essas expressões só podem ser significadas através do conhecimento no contexto no qual são proferidas. Por este motivo é que um pesquisador não pode jamais tentar traduzir o que diz o ator, não pode substituir palavras proferidas por outras mais objetivas. Ao contrário disso, para conseguir compreender o processo de produção das ideias ele deve buscar analisar o contexto onde essas expressões são produzidas. 
          Entretanto, Garfinkel destaca que a utilização das expressões indexicais não existe só dentro das narrativas de pessoas leigas. De acordo com ele, essas expressões também podem ser encontradas em 

relatos de profissionais. Por exemplo, a “fórmula” em linguagem natural “a realidade objetiva dos fatos sociais é o princípio fundamental da sociologia” é ouvida por profissionais, de acordo com a ocasião, como definição das atividades dos membros da Associação, seu slogan, sua tarefa, meta, realização, motivo de ostentação, conversa de vendedor, justificativa, descoberta, fenômeno social ou limitação de pesquisa (GARFINKEL, 2012, p. 224).

            Desta forma, o que o raciocínio prático das Ciências Sociais faz é suprir as propriedades indexicais do discurso, demonstrando a relatabilidade racional das atividades do dia a dia, com a finalidade de garantir a adequada observação, bem como o relato das particularidades da organização social cotidiana. 

          3.3. O terceiro entre os conceitos da etnometodologia é a “Reflexividade”, mesmo não tendo consciência disso, os atores descrevem e constroem, simultaneamente, a realidade social quando falam. Ou seja, reflexividade consiste nas práticas que descrevem e constituem o quadro social, ao mesmo tempo. De acordo com a etnometologia, os atores têm a reflexividade como uma capacidade, embora a capacidade de reflexão não lhes seja inerente, no sentido de que eles aplicam metáforas em seu dia a dia e essas metáforas reificadas fazem com que tudo aquilo que veem não seja notado. Desta forma, é através da sua institucionalização que o conhecimento que o senso comum tem dos acontecimentos sociais se legitima como conhecimento do mundo real.
          Pode-se, assim, definir  a reflexividade como uma propriedade das práticas sociais, que favorece a descrição, constituindo um quadro social específico. Observa-se, a partir de então, que as atividades que os membros realizam com o objetivo de produzir e manobrar diariamente as circunstâncias de sua vida organizada são análogas aos procedimentos que utilizam para tornar descritíveis essas mesmas situações.

          3.4. A “Relatabilidade”, conceito que tem uma estreita ligação com a ideia de refexividade, é o quarto conceito da etnometodologia. Embora se refira à propriedade das descrições que os atores fazem da realidade, a relatabilidade não consiste numa simples e pura descrição da realidade, mas uma descrição que constrói o mundo. A questão da relatabilidade é considerada primordial na etnometodologia, tendo em conta que, muito mais que apresentar os métodos utlilizados pelos membros para tornar relatáveis as suas experiências, esses membros também lançam mão dos mesmos métodos para conseguir uma ordenação social. São os relatos desse mundo social que fazem da ação dos membros do grupo algo compreensível, expondo o seu sentido a partir do momento em que conta ao outro os processos do próprio relato, fazendo do mundo algo visível. Em outras palavras, pode-se dizer que a relatabilidade se refere à característica de tornar inteligível uma ação e, ao mesmo tempo, de explaná-la, já que os membros devem, ao mesmo tempo, realizar suas ações e dotá-las de clareza para que seu sentido seja imediatamente identificado ou explicável.

           3.5. Por fim, é importante trazer a noção de “membro”, esclarecendo, primeiramente, o seu sentido, de acordo com Garfinkel e Sacks: 

Não empregamos o termo “membro” com referência a uma pessoa. Refere-se, sim, ao domínio da linguagem natural, o qual entendemos da seguinte maneira. Observamos que as pessoas, na medida em que estão falando uma linguagem natural, de alguma forma estão envolvidas na produção objetiva e exposição objetiva de conhecimento de senso comum de atividades cotidianas como fenômenos observáveis e relatáveis (GARFINKEL;SACKS, 2012, p. 227).

          Ou seja, de acordo com eles, a noção de membro não se relaciona com a ideia de articulação entre o indivíduo e seu grupo social, mas sim à utilização da linguagem comum que leva o indivíduo a pertencer ao grupo. Frisam que é universalmente comum que os membros façam uso de “fórmulas destinadas a remediar o caráter indexical de suas expressões e, mais concretamente, procuram substituir as expressões indexicais por expressões objetivas” (GARFILKEL;SACKS, 2012, p. 227).
          Para Coulon, “membro” consiste em uma pessoa “dotada de um conjunto de procedimentos, métodos, atividades, savoir-faire, que a tornam capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a rodeia” (COULON, 2005 apud BISPO;GODÓI, 1998, p. 684). Em outras palavras, o membro consegue, sem grandes problemas, resolver a questão da indicialidade nos discursos para identificar os padrões do senso comum. Para tornar mais fácil a compreensão, pode-se utilizar como exemplo, a situação de um senhor de grande nível intelectual, de idade avançada e de classe social elevada que quisesse se reunir com adolescentes membros de grupos marginalizados de uma região de periferia. Dificilmente ele conseguiria interagir nessa conversa, pois muitas expressões indiciais não seriam compreendidas por ele (quebrada, véi, correria, o preto e o branco, cracudo, entre outras). Mas isso não quer dizer que a interação seria impossível: os atores buscariam padrões para conseguirem ser entendidos e o homem de idade avançada, que não foi considerado membro naquele primeiro momento, vem a se tornar membro através da apropriação do discurso. Só a partir do momento em que conseguimos chegar, segundo Coulon, “sem demasiada dificuldade, a um acordo sobre a significação de nossas ações, apesar da infinita indicialidade das trocas conversacionais e das situações sociais”, é que nos tornamos membros”. (COULON, 1995, p.161).
          Assim, o indivíduo que domina a linguagem natural do grupo e que, através desse domínio, consegue descrever e construir o mundo que o grupo percebe conjuntamente, é considerado um membro passa a interagir com os membros do grupo, construindo a realidade dentro das interações cotidianas. Para regular suas práticas, os atores procuram identificar o entendimento que o outro tem da realidade, promovendo uma busca recíproca, que se dá através de quatro procedimentos, a saber: a reciprocidade das perspectivas (a troca de visões de mundo e pontos de vista); a cláusula “et caetera” (um tipo de acordo verbal através do qual o grupo assume que existem significações e compreensões comuns, mesmo quando estas não são esclarecidas. Ex: a utilização do “etc.” para resumir o que não chegou a ser falado); os padrões do senso comum (produzidos pelos atores para promover entendimento entre o grupo); e, por fim, o caráter prospectivo e retrospectivo dos acontecimentos (expressões que, ora antecipam falas, ora trazem à tona falas do passado, com objetivo de tornar mais clara a comunicação).
          É importante também ressaltar que, nas interações que ocorrem dentro dos grupos, há uma regulação do discurso, com cinco regras precisas: a) dispositivos de mudança de turno; b) fenômenos de reparação; c) unidades interacionais: os pares adjacentes; d) estratégia de envolvimento; e) organização estrutural hierárquica da interação discursiva. Tais regras serão detalhadas a seguir:
          
          a) Os dispositivos de mudança de turno tratam das normas estabelecidas pelos próprios atores, com o objetivo de ordenar a interação. Tais normas determinam e limitam o tempo de fala de cada interlocutor, especificando o tempo de falar e o tempo de ouvir dentro da interação, a fim de garantir o sucesso da interação, evitando uma fala longa demais ou um silêncio demasiadamente longo entre uma e outra fala. A situação pode ser exemplificada, utilizando a letra “L” como um dispositivo que indica o final de um turno identificado como “AB”, ou seja, “L” é o sinal para que o outro comece a falar e aparece sempre que existe uma interrogação. Desta forma, fica claro que o número de repetições do “L” indica sucesso na interação:
                    
                       AB: Gostaria de saber sobre a vida na prisão. (...)
                            Qual foi a sua reação na primeira noite que dormiu na cela?
                        L: Eu fiquei acordado a noite inteira (continua)

          b) A segunda regra de regulação do discurso trata dos fenômenos de reparação, que consistem em corrigir as falhas cometidas nas falas dentro da interação. Essa correção tanto pode ser feita por aquele que falou como pelo que ouviu. No caso apresentado abaixo, é o enunciador que corrige a própria fala:
              
                       AB: Quantos empregos você teve antes de ser preso?
                          L: Nenhum. Ou melhor, trabalhei em dois lugares, mas sem carteira assinada.

          c) A terceira regra está voltada para as unidades interacionais: os pares adjacentes que, segundo a etnometodologia, são sequências de enunciados duplos que os falantes produzem, cada um na sua vez de falar, sendo que, ao ser enunciada, a primeira parte depende da seguinte para completar seu sentido. Os enunciados podem ser denominados como preferenciais ou não preferenciais: no primeiro caso, a fala é produzida sem hiatos; no segundo, o falante prossegue a sua fala depois de uma pausa marcada por expressões específicas como, por exemplo: “bem...”, “ah”, entre outras. Ex:.

                         1.AB: É possível estabelecer amizades dentro da prisão?
                               L: Sim, a gente conhece muitos mano legal.
                         2.AB: E você confia nesses amigos?
                               L: Sim (...) mas sempre desconfiando.

           d) A estratégia de envolvimento é a quarta regra e consiste na observação da construção da narrativa e da enumeração como recursos para que o grupo se envolva e ocorra uma interação. Dentre essas estratégias de envolvimento os atores utilizam repetições, antíteses, lançam mão da ironia e de outros recursos para envolver o participante, e é esse envolvimento que facilita a interação discursiva, tornando-a agradável, conforme se pode perceber no diálogo abaixo:

          - Vivi minha vida toda em busca do homem ideal e, enfim, te encontrei. Você fala demais, é ansioso, requer sempre muita atenção, não lembra das datas importantes, é descuidado, não sabe lidar com a minha TPM, mas me faz sentir uma deusa, a mulher mais linda do mundo. Você é insubstituível.

          Vale ainda ressaltar que, através da utilização de recursos poéticos como a repetição, antíteses, elipses, metáforas, por exemplo, o envolvimento discursivo elabora os estados emocionais na interação, que tanto podem trazer um efeito positivo como um negativo: é positivo quando a fala ajuda a tornar mais intensa a relação entre os membros, e considera-se negativa a fala que traz o rompimento de relações entre eles. 

          e) Para finalizar esta exposição sobre a regulamentação da atividade discursiva na etnometodologia, este breve estudo traz a quinta regra, que trata da organização estrutural hierárquica da interação discursiva. Essa organização aborda as regularidades semânticas, sintáxicas e pragmáticas que norteiam os participantes em determinada interação, obedecendo uma organização hierárquica que apresenta cinco níveis distintos: interação, sequência, permuta, intervenção e ato de linguagem – sendo que a interação é o nível mais elevado e o ato da linguagem consiste no nível elementar. Com exceção da interação e do ato da linguagem, cada um dos outros níveis é constituído pelo nível que está acima e, por sua vez, constitui o nível que está abaixo dele.
           É importante destacar que, na abordagem etnometodológica do discurso, a utilização dos citados métodos e procedimentos é feita pelos próprios membros do grupo, para dotar de significado as suas práticas sociais. E o sentido do discurso está na atividade que as pessoas realizam em conjunto no decorrer da vida cotidiana, já que, nessas interações discursivas, os indivíduos lançam mão de conhecimentos do senso comum e os partilham mutuamente, construindo e reconstruindo incessantemente o mundo. Assim, quando utilizam-se da fala para comunicar, os indivíduos interagem e o sentido da fala de um vai depender diretamente do contexto da interação e das falas dos outros indivíduos. Em suma, a atividade discursiva consiste numa atividade ordenada e regulada e é essa característica que torna possível a sua identificação e o seu inventário, a sua descrição e sistematização. 
          A partir do acima exposto, fica claro que o pesquisador que pretender utilizar-se do método etnometodológico em seus estudos, deve, primeiramente, manter um foco nos métodos utilizados pelos participantes para significar seu mundo, abdicando de suas próprias hipóteses e concepções; ou seja, o pesquisador não deve levar prontas as suas perguntas para o campo, mas deve formulá-las a partir do contato com o grupo. Para conseguir isso, deve-se lançar mão da epoché de Husserl, ou seja, deve deixar em suspenso os próprios conceitos para conseguir perceber melhor as práticas cotidianas dos participantes e entender a significação e o sentido dessas práticas para os membros do grupo, botando em prática a “indiferença etnometodológica”, maneira como Garfinkel nomeia esse processo.
          Por fim, cabe ressaltar que o etnometodólogo deve manter uma postura crítica diante dos seus estudos, fiscalizando o próprio olhar, a maneira como observa e analisa as falas, de maneira a interferir o menos possível, evitando se deixar guiar pela sua própria visão de mundo, o que poderia prejudicar o relato daquilo que ouve, vê e analisa. Esta última recomendação é de fundamental importância, principalmente tendo em vista o bombardeio de informações e opiniões que o pesquisador recebe cotidianamente, seja através dos meios de comunicação ou de leituras e conversas. Numa sociedade em que grande parte dos indivíduos ficam conectados à internet 24 horas por dia, a própria ideia de “realidade” muda rapidamente de sentido, já que passa por interações e mediações o tempo todo. 

Considerações finais 

        A partir de tudo o que foi apresentado acerca do método etnometodológico e sua  aplicação na pesquisa, conclui-se a importância desta abordagem para diferentes organizações. Na pesquisa sociológica, os estudos etnometodológicos apontam para a natureza das organizações enquanto resultado de uma realidade que foi socialmente constituída, a partir de interações entre seus membros dentro de um contexto marcado pela intersubjetividade no compartilhamento de significados. A partir desse compartilhamento, torna-se possível perceber que as ações assumem importância e significado.
          Tomando como exemplo o estudo de prisões, levando em consideração que se trata de uma instituição constituída pelos seus membros em suas práticas cotidianas, e que ela só existe a partir desses indivíduos em um processo de construção e reconstrução incessantes, torna-se possível compreender que o significado da prisão enquanto fenômeno está intrinsecamente relacionado com o lugar que ocupa e o sentido que adquire no mundo cotidiano de presidiários e funcionários. Também torna-se claro que, para compreender o fenômeno “prisão” é preciso olhar para ele teórica e metodologicamente da maneira adequada, ou seja, buscando, através da fala e das ações práticas da vida cotidiana daquele grupo social, o significado que é construído para o fenômeno.
          A etnometodologia, aplicada em organizações complexas como a acima citada, favorecendo uma aproximação maior do fenômeno, tente a trazer grande contribuição para o campo das Ciências Sociais, no sentido de possibilitar a compreensão desses grupos complexos.
           Para finalizar este breve estudo, é preciso frisar que, ao se fixar na análise da fala nas interações, a etnometodologia acaba abarcando um universo amplo de possibilidades de análise, já que a fala está presente na maioria das ações humanas. Seja na análise da interação entre professores e alunos, ou das interações dentro de grandes empresas, ou ainda nas complexas relações entre a segurança pública e as populações estigmatizadas, há muito mais que números de estatística para se desvendar, e a etnometodologia pode nos levar a uma maior compreensão da dinâmica que move tais relações. Afinal, a maneira como um policial identifica um suspeito e o interroga, tanto quanto a conversa que se desenvolve no momento em que uma pessoa é atendida num órgão público, podem ser de extrema importância para que se possa compreender melhor as instituições sociais e os seus membros. 

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Conforme regras da ABNT, citar este artigo da seguinte forma:

NUNES, A. I. C. O que é etnometodologia?. Artigos de Filosofia. Cataguases, 19 jun. 2019. Disponível em: www.artigosfilosofia.blogspot.com. Acesso em: (data do acesso).

ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido.  Fonte:    http://www. intermedi a. uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep        ...