quarta-feira, 12 de junho de 2019

ANÁLISE DE DOIS TEXTOS DE JEAN-PAUL SARTRE: “O OLHAR” e “EM-SI E PARA-SI: ESBOÇOS METAFÍSICOS "

Por Ana Idalina Carvalho Nunes*  

Ficheiro: Flickr - Gabinete de Imprensa do Governo (GPO) - Jean Paul Sartre e Simone De Beauvoir recebidos por Avraham Shlonsky e Leah Goldberg.jpg
O filósofo e escritor francês Jean Paul Sartre e a escritora Simone De Beauvoir chegando a Israel e acolhidos por Avraham Shlonsky e Leah Goldberg no aeroporto de Lod (14/03/1967). Autor da foto: Miylner, Moše, fotógrafo israelense.  Fonte: Wikimedia Commons. 
          
         No estudo desses últimos textos do livro “O ser e o nada”, de Jean-Paul Sartre, é possível penetrar ainda mais fundo em seu pensamento e vivenciar o seu teor na prática deste século XXI. Segundo o filósofo, no início do primeiro texto em questão, intitulado “O olhar”, no momento em que eu tomo consciência da presença do outro, não existe mais uma separação entre ele e mim; e isto acontece porque, ao ver o outro, minha visão acende uma luz de alerta, captando o outro como um objeto estranho ao eu. Para exemplificar, Sartre cita um jardim onde temos a grama, as cadeiras etc, Nesta situação, podemos distinguir o olhar em três momentos: primeiramente o homem como um integrante da paisagem - onde é concebido como objeto que pode ser retirado do contexto; em seguida, existe o homem em relação com a paisagem, uma relação que escapa dele, ele não pode ser retirado, mas não tenho relação real com ele, ele é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito; por último temos o homem em relação a mim, onde ele passa de objeto a sujeito.Tem início, então, um reconhecimento prévio das intenções do outro a meu respeito: “Porque perceber é olhar, e captar um olhar não é apreender um objeto no mundo, mas tomar consciência de ser visto” (p. 333). Assim, a partir do momento em que sofro o impacto de saber que sou percebida pelo outro, eu deixo de ser eu - e passo a existir perante o outro e o mundo, ou seja, “a aparição do outro faz surgir na situação um aspecto não desejado por mim, do qual não sou dono e que me escapa por princípio, posto que é para o outro” (p.341). 
          Sartre lança luz sobre verdades e receios que estão contidos na revelação do outro quando “ele” nos percebe. Em outras palavras, Sartre mostra que o eu é o ser revelado ao outro, captado pela consciência deste outro – o que reflete de diversas formas o eu que está diante do olhar plural do outro. O eu e o outro são apenas um caleidoscópio onde tudo gira muito rápido. Por um segundo, o eu tem plena consciência do outro e é neste momento que se faz um silêncio quase insuportável, porque o eu e o outro estão paralisados um diante do outro, tentando compreender a dimensão da descoberta. Desta maneira, quando a consciência do eu se funde com a consciência do outro, as duas consciências estão se avaliando simultaneamente, reconhecendo a si mesmas em si e no outro. Esta conscientização mútua produz uma visão distanciada e distorcida: isso causa sensações de grande conflito tanto no eu como no outro. A revelação do eu diante do outro traz a constatação de que a presença do outro é uma totalidade estendida do eu - e a partir dessa completude, o eu e o outro se encontram na condição de uma compartilhada intimidade que causa um grande mal-estar (por ser forçada), já que o outro enxerga as entranhas do eu. Conforme diz Sartre “Pelo olhar do outro eu vivo fixado no meio do mundo, em perigo, como irremediável. Mas não sei qual meu ser, nem qual meu sítio no mundo, nem qual a face que esse mundo onde sou se volta para o outro”. (p.345). A liberdade do eu e do outro está, desta maneira, comprometida com a presença inquietante e perturbadora e com o perigo iminente de uma descoberta não permitida, mas invadida de tal forma que chega a ser sufocante. 
          A realidade subjetiva que a própria liberdade do eu e do outro fornecem, demarcam o espaço da liberdade de cada um. Quando o eu e o outro tomam consciência disso, passa a existir um elo sutil entre eles, que faz com que a existência de ambos dependa deles mesmos. Eles se descobrem e não têm como negar tal descoberta: estão visíveis, com total consciência da existência de um e de outro. Há então uma negação imediata recíproca entre o “eu” e o “outro” e, como estes não têm como se negarem a si mesmos, ficam se colidindo entre si - é a partir desse momento que ambos se refletem um no outro. 
          Para Sartre, a consciência se deflagra para o mundo, a consciência é o ser consciente do mundo: ela existe e está no mundo como um ser entre outros seres, é a aparição de si rumo ao mundo. Ela é o objeto intencional revelado, é o desprendimento do eu. Depois de ter visto e percebido outro, é impossível sair ileso. Essa descoberta é marcada pelo conflito que leva o homem ao conhecimento de si mesmo diante do outro e do conhecimento do outro. Durante a avaliação de reconhecimento do “eu” e do “outro”, ambos estão se autovaliando e tentando manipular os seus sentimentos e suas intenções diante do objeto estranho. Há uma negação instantânea de ambos, pois não querem que invadam sua “intimidade”; é então que começam a dissimular as suas intenções diante do objeto estranho, moldam as suas intenções de acordo com a análise que o outro faz de si. O ”eu”, embora sempre faça tentativas de evitar o “outro”, está sempre diante dele porque, a partir do momento em que o “eu” descobre o “outro” , torna-se impossível fugir. O eu e o outro precisam um do outro para existir – é impossível a existência do eu sem a existência do outro. Também não é mais possível que o eu e o outro se neguem mutuamente, já que estão frente a frente, expostos a um mundo real e fatídico, onde o eu se materializa diante do outro. O outro se torna, então, o meu inferno, porque me enxergo diante dele e passamos a ter conflitos por não querermos ser vistos nem descobertos. Assim são criadas as “máscaras” de dissimulação para que o verdadeiro eu fique escondido – através da manipulação de intenções, da ocultação dos sentimentos, do movimento constante do eu, exercendo seu papel de omitir-se diante do outro, de esconder-se - para não deixar que o outro conheça suas fraquezas, a fragilidade do “eu”. Passando agora para a questão do ‘em-si’ e do ‘para-si’, é importante destacar que Sartre insiste na tese de que a síntese entre o ‘em-si’ e o ‘para-si’, ainda que seja impossível, “é sempre indicada”(p. 759). O hiato que é mantido entre os dois modos de ser torna impossível a síntese, pois ele impede a dissolução de um no outro - e a consequência desta ambiguidade é a repetição do fracasso do ‘para-si’. Passamos a notar, então, que a totalidade ‘em-si-para-si’ é sempre posta, porém, também sempre desagregada. Percebe-se que a divergência, antes presente no ser da consciência, agora é identificada também neste ser que surgiria como a síntese entre os dois modos de ser. O ser ‘em-si-para-si’ existe somente como o ideal do ‘para-si’. Este ser projetado e negado, ao mesmo tempo, surge como a ambiguidade que caracteriza o ser ideal do ‘para-si’. Ambiguidade que está na raiz do ser do valor. Este ser que é pretendido, mas que é recusado, este ser ideal nada mais é do que a totalidade destotalizada, identificada agora, no ser, não só no ‘para-si’ ou na relação entre o ‘para-si’ com outrem. Se podemos estabelecer a relação entre a consciência e o ‘em-si’, esta somente se dá como captação que o primeiro termo faz do segundo. O ser “é aquele que é captado” (p. 761). Se admitimos que a consciência estabelece uma relação com o ‘em-si’, a questão da totalidade pode ter um lugar, pois, de alguma forma, sou “(...) ao mesmo tempo consciência do ser e consciência (de) mim” (p. 761). Entretanto, Sartre estabelece que o modo como a totalidade pode ser explicitada não pertence ao setor da ontologia, levando em consideração que temos somente dois modos concretos de ser: o ‘em-si’ e a consciência, sendo o terceiro modo, aquele que funciona como o ideal da consciência, o ‘em-si-para-si’. O estabelecimento da realidade desta idealidade não pode ser discutido pela ontologia sartreana e, sendo assim, a resposta ao modo como a totalidade pode ser dada encontra lugar apenas na metafísica. Neste sentido, a ontologia sartreana encontra o seu limite. De acordo com Sartre, este problema pertence ao setor da metafísica porque qualquer ato humano estabelece, de alguma forma, a relação da consciência com o ser. E se a consciência é o fator de instauração de uma ação possível no mundo, ela também é a afirmação de uma idealidade correspondente, já que sempre visa à eliminação de suas carências, a ultrapassagem de sua falta essencial. Isto pode ser admitido porque o valor é “(...) a falta em relação à qual o Para-si determina a si mesmo em seu ser como falta” (p. 763). E se é assim, encontramos na relação entre a consciência e o ser o sentido do valor. Com o valor notamos que a ação humana visa a superar a falta, que nada mais é do que o preenchimento da lacuna, do hiato encontrado em seu próprio ser. É na identificação deste valor ideal das ações humanas Sartre centraliza o surgimento da tarefa da metafísica. Somente ela poderá determinar o sentido específico desta idealidade. Mas, se não devemos somente visar ao aspecto material da ação, mas o seu lado ideal, isto exige que o ‘espírito de seriedade’ seja negado. Tal constatação se impõe porque, para Sartre, esta postura, além de eliminar a subjetividade da transcendência dos valores, transfere “[...] o caráter de ‘desejável’ da estrutura ontológica das coisas para sua simples constituição material” (p. 763). Para ele, o que está por trás desta renúncia ao ‘espírito de seriedade’ é a necessidade de manutenção dos ‘valores simbólicos’ do mundo. Se o ‘espírito de seriedade’ procura obscurecer (...) todos os seus objetivos para livrar-se da angústia” (p. 764), a metafísica deve avaliar se este ato é desejável. Se o mundo é uma ‘exigência muda’, o ato que se limita a esta exigência também acaba por ser uma obediência a esta determinação. Assim, agir de má-fé significa negar a idealidade, aniquilar o valor. No plano rigoroso da materialidade, todos os fins são equivalentes e somente a ação humana que visa a um ideal transcendente pode valorar o mundo. É neste contexto que Sartre pergunta: quem será o agente moral? Aquele que age de má-fé ou aquele que enfrenta a liberdade e a angústia? É por isso que o problema do valor põe em discussão o sentido que deve ter a liberdade para a postura metafísica , questionando se a liberdade passaria a ser o fundamento do valor, ou se - mantendo a transcendência - se colocaria o valor em outra instância. E são estas questões, exatamente tais questionamentos que apontam para a função que a metafísica poderia desempenhar, principalmente a de responder aos problemas que a ontologia não tem condições de fazê-lo. A partir dessa constatação, leva à crença de que não é possível encontrar uma solução possível para o problema da síntese ‘em-si-para-si’ nos dados postos somente pela ontologia sartreana. 

 Trabalho da disciplina de Antropologia Filosófica III apresentado ao professor Juarez Sofiste pela aluna Ana Idalina Carvalho Nunes, durante o curso de graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, novembro/2011. 

Acesse o artigo em PDF, com  formatação conforme regras da ABNT, no site: 

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