sábado, 25 de junho de 2011

A FILOSOFIA PARA CRIANÇAS COMO ALTERNATIVA PARA O ENSINO DA FILOSOFIA


Juarez Gomes Sofiste (Chefe do departamento de Filosofia da UFJF)

Resumo: O presente comunicação faz algumas considerações sobre o ensino da filosofia e apresenta o Programa de Filosofia para Crianças do professor Matthew Lipman como alternativa para o ensino da filosofia no primeiro e segundo graus.
Palavras-chave: filosofia, ensino,educação, pensar.

Abstract : This paper discusses the study of philosophy in the primary school and presentes the Matthew Lipman’s Program of Philosophy for Children as a satisfactory alternative to achieve the educational purposes of the discipline called philosophy.
Key-words: philosophy, education, teaching, thinking.


Um dos primeiros problemas que se vê obrigado a abordar o estudioso do ensino da filosofia é, diferentemente de qualquer outra matéria, o problema de sua necessidade ou não, quer dizer: justifica-se o ensino da filosofia? Ora se a filosofia fosse um bem de primeira necessidade ou se houvesse consenso em torno da sua importância, tal questionamento seria inoportuno, visto que, provavelmente a filosofia se imporia por si mesma. Ninguém, por exemplo, pergunta sobre a necessidade do ensino da língua materna.

Do ponto de vista histórico, existe uma tendência muito forte na afirmação de que as razões pelas quais a filosofia foi excluída do ensino médio são de ordem política e ideológica. É nesta linha de pensamento, por exemplo, que a prof. Maria Teresa Penteado Cartolano no livro Filosofia no ensino de 2o. grau, justifica a extinção de seu ensino. Segundo a autora a partir do golpe político militar de 64, com a resolução (nº 36, de 30/12/68) do Conselho Estadual de Educação o campo de atuação da filosofia foi limitado, tornando-a disciplina optativa em cada estabelecimento de ensino. Sua absoluta extinção como disciplina foi pensadamente preparada através de uma série de leis, decretos, pareceres e resoluções do Conselho Federal de Educação e do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo, que, neste caso, centralizavam as decisões da área educacional. A legislação instituída na época era um reflexo das propostas acordadas entre o MEC e USAID. A educação, segundo a autora, passa a ser tratada como uma questão do desenvolvimento do país e da segurança nacional, a filosofia, não atendendo a tais solicitações tecnoburocráticas e político-ideológicas, já não interessava aos objetivos que se pretendiam instituir na estrutura do ensino brasileiro. A condição de disciplina optativa, segundo previa a resolução n.º 376, de 30 de dezembro de 1968, veio facilitar a supressão definitiva da filosofia em 1971, com a Lei 5692.

Segundo o professor Sérgio Pereira da Silva “a filosofia perdeu o seu espaço, como disciplina no ensino Médio, muito mais em função da ideologia técnico-desenvolvimentista que conquistou hegemonia entre os educadores, no final da década de sessenta e durante a de setenta”. Para o professor nem sequer foi necessário um dispositivo legal que proibisse a permanência do ensino da filosofia.

A princípio partilhávamos de tal leitura, mas cada vez aumenta nossa convicção de que a filosofia “morreu” de morte “morrida” ou seja, pura e simplesmente não se afirmou como necessária. Ora, se a razão fundamental da exclusão da filosofia é uma certa perseguição política; por que, hoje, não havendo a tal perseguição, a filosofia continua sendo excluída?

A partir da década de 70 teve início um grande debate em nível nacional sobre o ensino da filosofia. A Editora Convívio em 1978 promoveu um Encontro Nacional de Professores de Filosofia com o tema: A filosofia e o ensino da filosofia, onde, ironicamente, comentava-se que o objetivo do Encontro de Professores de Filosofia era propor e defender a tese da supressão da filosofia em todos os níveis de ensino. Ou como afirmou, não ironicamente, George Gusdorf na conferência de abertura do encontro: “A filosofia e a universidade têm isto em comum: brilham neste mundo pela sua ausência”.

Como resultado deste grande debate tivemos, em primeiro lugar, uma corrida das editoras na produção, sob encomenda, de livros didáticos para o ensino da filosofia e , em segundo lugar, a formação de grupos de estudos com a promoção de simpósios, seminários, semanas de estudos, etc., o que resultou na produção de muito material sobre a temática. Passados mais de vinte anos, o debate continua atual e o ensino da filosofia, de acordo com nossa leitura, continua uma questão mal resolvida. Para tal uma pequena olhada nas propostas veiculadas pelos defensores da filosofia para confirmarmos que seu ensino ainda é um tema por demais confuso. O que esperar de uma disciplina da qual não podemos dizer ao certo o que é, o que visa e a quem serve?

Assim, ao lado de entendê-la como uma super disciplina, de modo que, bastaria a sua inclusão, por exemplo, no ensino médio e teríamos estudantes mais críticos e reflexivos, temos propostas por demais audaciosas e, em geral, fora da realidade. Como, por exemplo, o programa defendido pelo professor João Paulo Monteiro, segundo o professor: 1- O ensino da filosofia no secundário deverá aliar o estudo da história da filosofia com a discussão de temas filosóficos; 2- Os dois eixos acima mencionados deveriam constituir o fundamento da organização educacional da área filosófica em nível secundário. Tal organização deverá levar em conta a minoria de estudantes que mais tarde optará pelos cursos de filosofia. Portanto, a preparação secundária em filosofia deve fazer-se entre um máximo de disciplinas, destinadas sobretudo ao aluno que planeja fazer mais tarde o curso universitário de filosofia, e um mínimo destinado aos outros estudantes; 3- O conjunto mínimo de disciplinas deveria incluir uma iniciação à história da Filosofia e uma outra mais voltada para a atualidade filosófica; 4- No extremo oposto a este mínimo se situaria o conjunto máximo, composto de quatro disciplinas: História da filosofia, Iniciação à filosofia atual, Lógica e filosofia da ciência, Filosofia Moral e política.

O documento do MEC, “Padrões de qualidade,” entende que o papel da filosofia no ensino médio é prestar uma essencial contribuição, tanto para a “compreensão do significado da ciência, das letras e das artes”, quanto para “o exercício da cidadania”. O documento cobra dos cursos de filosofia uma especial atenção com a formação do professor de filosofia, mas não apresenta novidade alguma em relação ao seu ensino.

De acordo com nossa hipótese de trabalho o sentido e a tarefa do ensino da filosofia no primeiro e segundo graus é “Ensinar a Pensar”. Acreditamos que tal questão não foi suficientemente levada em consideração, tanto no nível dos debates quanto às formulações das propostas de programas. E para nós esta é uma das principais causas do fracasso do ensino da filosofia. Não aceitamos que foram perseguição política e ideológica os principais fatores responsáveis pelo insucesso do ensino da filosofia no primeiro e segundo graus. Não seria a confusão reinante em relação ao ensino da filosofia, onde cada um faz o que lhe parece melhor, sua maior ameaça?

Partimos do pressuposto de que a questão do ensino da filosofia precisa de uma mudança do eixo das discussões: ao invés de perguntarmos se é mais adequado trabalhar com temas antigos ou modernos, se com história da filosofia ou lógica, se ética ou metafísica, deveríamos perguntar como, apoiados na filosofia, promovermos uma educação para o pensar?

Não se afirmando como necessária, buscam-se outras vias para garantir o ensino da filosofia, como, por exemplo, pela obrigatoriedade da lei ou pela cobrança de seus conteúdos no vestibular, o que consideramos um verdadeiro absurdo, como já é realidade na Universidade Federal do Triângulo.

A obrigatoriedade do ensino da filosofia, pela força da lei ou qualquer outro recurso, não é uma boa razão a demostrar que de fato ela não é uma necessidade intrínseca? Se de fato fosse uma necessidade e se houvesse uma consciência de sua importância seriam necessários sua imposição por força da lei ou cobrança de seus conteúdos no vestibular?

O grande debate das ultimas três décadas sobre o ensino da filosofia, na verdade, consistiu, também, num movimento de pressão para o retorno da filosofia na educação de primeiro e segundo graus. Na perspectiva da legalidade podemos afirmar que o movimento foi vitorioso, visto que, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ( Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1997), em seu artigo 36 determina, no parágrafo primeiro, que “os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de tal forma que ao final do ensino médio o educando demostre: (...) III . domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania”.

Na leitura do documento do MEC - “Padrões de Qualidade”- , afirma-se: “ De qualquer maneira que seja regulamentado este artigo 36 da nova LDB, é evidente que o ensino da Filosofia se expandirá de maneira rápida, tornando-se urgente mesmo o reforço quantitativo e qualitativo dos cursos que preparam os professores para o ensino médio, principalmente as Licenciaturas”. De acordo com a leitura que fazemos, a ausência da filosofia, como disciplina regular, na educação de primeiro e segundo graus, não deve ser imputada à falta ou não de uma legislação que a obrigue de forma compulsória, mas deve-se, sobretudo, ao fato de ela própria não se impor como conteúdo necessário, agradável e capaz de seduzir os próprios alunos. Mas por outro lado, achamos absolutamente justas as recomendações do documento em relação à formação do professor: “ Deverão merecer especial atenção as condições sob as quais o licenciado em filosofa será formado, não se tratando de apenas “agregar” disciplinas ditas “pedagógicas a um currículo mínimo de disciplinas ditas “específicas”, mas sim de produzir um processo de formação integrada, que prepare o licenciado para o exercício de suas tarefas didáticas na escola”.(MEC - Op. Cit. p.03)

Diante de um quadro minimamente indicado, podemos perguntar: já não é tempo de justificar o ensino da filosofia pelos seus resultados, ao invés de lindas argumentações ou pela obrigatoriedade da lei? Trabalhamos com a idéia de que a filosofia não é um conteúdo a ser ensinado mas, ao contrário, como defende Lipman: a filosofia tem como tarefa fundamental o ensinar a pensar e o caminho para tal é mediante o fazer filosofia. Portanto não se trata de ensinar história da filosofia, ética , epistemologia, estética ou qualquer outra disciplina filosófica no primeiro e segundo graus, tal tarefa é para graduação e pós-graduação. Devemos, sim, buscar nestas disciplinas os elementos necessários para construirmos uma educação para o pensar.

Neste sentido estamos tendo uma experiência significativa no Departamento de Filosofia (DFIL) da Universidade Federal de Juiz de Fora. (UFJF). Depois de reavaliar seus trabalhos e sua realidade acadêmica global, o DFIL definiu coordenadas de prioridades visando o aprimoramento de suas ações acadêmicas. Em relação à formação do professor, diversas ações foram implementadas com o objetivo de melhorar a qualidade da formação do futuro professor de filosofia. Dentre elas a criação e implementação do Núcleo de Estudos e Pesquisa de Filosofia na Educação (NEFE) . Sob minha coordenação estruturamos um “grupo de trabalho” que tem desenvolvido diversas atividades sobre a temática, como por exemplo: pesquisa e extensão - “Filosofia no 2o. grau: diagnóstico e propostas de ação”, registro 019184/95-60; pesquisa e ensino- Programa de aulas experimentais, registro nº 18239/96-03, pesquisa e ensino- Programa de de Treinamento Profissional- Filosofia para crianças - registro nº 233071-016099/96-67. Pesquisa - Leitura latino-americana do programa de filosofia para crianças: Freire e Lipman , registro nº 14481/97-90.

Com o trabalho de pesquisa e extensão de 1995- Filosofia no segundo grau: diagnóstico e propostas de ação - sentimos um certo desânimo em relação às perspectivas do ensino da filosofia tal como vem sendo discutido e proposto. A partir de então, iniciamos um processo de mudança em nossas ações, exorcizando o ensino da filosofia tal como tradicionalmente se fez, ou seja, apenas conteudesco.

Os princípios que passaram a nortear nossas ações foram: 1- Não é a lei que garantirá o sucesso do ensino da filosofia no primeiro e segundo graus; 2- O objetivo da filosofia no primeiro e segundo graus não é a formação de filósofos, portanto, fica descartada a idéia de estabelecer programas a partir de disciplinas do curso de filosofia.(cultura filosófica); 3- O papel da filosofia é contribuir na formação de estudantes para que pensem melhor, isto é, sejam capazes de refletir com inteligência sobre questões previamente definidas. 4- A importância e a necessidade da filosofia será reconhecida quando os professores de filosofia tornarem esse saber desejado por aqueles aos quais é dirigido. 5- O ensino da filosofia no primeiro e segundo graus deverá ser um Programa de Educação para o Pensar.

Nossa aproximação com o programa de filosofia para crianças foi justamente por entendermos que Matthew Lipman teve uma percepção brilhante ao buscar caminhos concretos para o ensino da filosofia. É o que estamos experimentando com a implantação do Programa de Lipman na rede pública e rede privada de educação de Juiz de Fora. Assim sendo, indicamos os caminhos de Lipman como uma alternativa para o ensino da filosofia no primeiro e segundo graus.

Por que Matthew Lipman?


Em primeiro lugar pela sua contribuição ao ensino da filosofia. Um dos aspectos mais problemáticos no que diz respeito ao ensino da filosofia é o como fazer da aula de filosofia, “filosofia” e não meramente cultura filosófica. Os trabalhos que estamos realizando nesta área têm revelado que um dos problemas fundamentais, bem como uma das razões para a não aceitação da filosofia é justamente o equívoco muito comum entre nós, professores de filosofia , em confundir “filosofia” com “cultura filosófica”. Neste sentido é pertinente a observação de Heidegger:

Os equívocos de que a filosofia se vê constantemente cercada são mais fomentados pelo que nós mesmos fazemos, i é, pelos professores de filosofia. Com efeito, nossa tarefa habitual - justificada e até útil - consiste em proporcionar certo conhecimento informativo das filosofias até agora surgidas, o que aparece como sendo a própria filosofia, quando, no mínimo, é apenas ciência filosófica.

Em geral os livros dedicados ao ensino da filosofia, principalmente os de segundo grau e cursos básicos do ensino superior são roteiros de cultura filosófica. Como bem diz o professor Regis de Morais, tais obras servem apenas para atenazar a vida e a cabeça dos estudantes. “Uma coisa mumificada que não bule nem com o sangue nem com os entusiasmos dos estudantes”.( Reflexão. PUCCAMP. Ano XV. jan/abr. de l989. p. 07)

Em relação à dificuldade acima indicada, o nosso interesse em relação a Matthew Lipman é justamente pelo fato de entendermos que um dos grandes méritos de sua proposta pedagógica é justamente o de apontar caminhos concretos de como “fazer filosofia” e não apenas “cultura filosófica”.

Por outro lado, é evidente a contribuição da filosofia em relação à educação em geral. Hoje é lugar comum o reconhecimento da importância da filosofia na construção de uma educação para o pensar, como por exemplo na proposta de Conteúdos Básicos para o Ciclo Básico de Alfabetização (CBA) da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, que em relação aos Métodos de ensino propõe: “Defende-se, nesta proposta curricular, a adoção de didáticas mais atualizadas no ‘aprender a aprender’ ou no ‘saber pensar’, cujo móvel fundamental é a atitude de pesquisa”(p.17) Ou os Parâmentros Curriculares Nacionais que propõem como um dos objetivos do ensino fundamental que os alunos sejam capazes de: “questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição , a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação.” (p.108)

A questão que colocamos é: Como fazer uma educação para o pensar? Como ensinar a aprender? Como desenvolver a capacidade de análise crítica?

Indiscutivelmente a filosofia poderá dar grande contribuição a tal propósito. Mas, como buscar na filosofia a sua verdadeira contribuição à educação? É justamente o que Matthew Lipman indica no Programa de Filosofia para Crianças: o como fazer uma educação para o pensar. E não seria este o objetivo fundamental da filosofia na educação de primeiro e segundo graus?

Uma das teses de Lipman é a de que o pensar é uma atividade que não se adquire espontaneamente, portanto precisa ser desenvolvida. E isso é justamente o que tematiza em seu método inovador de educação para o pensar. Não se trata de “decorar” nomes de filósofos e suas doutrinas, pois o projeto pedagógico de Lipman é a tentativa de uma educação integral: seu programa aposta no diálogo, na “Comunidade de Investigação”, a partir de histórias, especialmente preparadas para instigar nos alunos a dúvida e o hábito de levantar e problematizar questões que nunca se fecham numa resposta pronta. Uma educação calcada apenas na transmissão do conhecimento, segundo Lipman, é incapaz de responder às exigências de uma sociedade em profundas transformações:

Na perspectiva do saber tradicional, o objetivo da educação é tomar as crianças ignorantes e torná-las cultas através da transmissão do conhecimento possuído pelos adultos. (...) Embora seja um modelo perfeito para uma tribo relativamente fixa- isto é, bem adaptada a um ambiente imutável- é virtualmente suicida para uma sociedade em que a mudança ocorre numa velocidade tal que o conhecimento que nos capacita para trabalhar com sucesso hoje será obsoleto daqui a uma década. (Lipman, 8 p.55)

O projeto pedagógico de Lipman é articulado na perspectiva da investigação. O Programa de Filosofia para Crianças tem como meta fundamental a transformação da sala de aula numa Comunidade de Investigação. Onde:

os alunos dividem opiniões com respeito, desenvolvem questões a partir das idéias de outros, desafiam-se entre si para fornecer razões a opiniões até então não apoiadas, auxiliarem uns aos outros ao fazer inferências daquilo que foi afirmado e buscar identificar as suposições de cada um. ( Lipman 09, p. 31)

A condição fundamental para a instauração da Comunidade de Investigação é o diálogo que vai além da dimensão professor-aluno. Na Comunidade de Investigação o diálogo passa a circunscrever todos os aspectos, fundamentalmente entre aluno-aluno e aluno-professor. Nesta perspectiva o professor deixa de ser visto como autoridade informacional. Diz Lipman:

Quando o professor é visto como uma fonte de informações, ... Isso cria um padrão de intercâmbio aluno-professor que frustra o objetivo da filosofia para crianças porque mina a noção de Comunidade e, em seu lugar, legitima a noção do professor enquanto autoridade informativa, e dos alunos enquanto aprendizes ignorantes. Numa Comunidade de Investigação, professores e alunos estão juntos como co-investigadores, e o professor tenta promover isto encorajando o intercâmbio aluno-aluno, tanto quanto aluno-professor. (Issao e Guga, Manual do professor. P. 21)

Esta relação dialógica proporciona uma nova dimensão de afetividade, uma nova compreensão do outro como agente facilitador para a construção do conhecimento e coloca em cheque a postura do professor como único pólo de difusão do saber, significando assim que “o professor deve renunciar ao papel de autoridade informativa,
não ao papel de autoridade instrutiva”( Issao e Guga Op. Cit. p. 21) . O professor passa a integrar-se como um participante cuja opinião não é conclusiva.

Com sua proposta de Filosofia para Crianças - Educação para o Pensar - o prof. Lipman desenvolve uma metodologia que trabalha uma das questões que consideramos ser uma das principais exigências da educação hoje: “ensinar a Pensar”. Trabalhamos com a hipótese de que este é o sentido e a tarefa do ensino da filosofia no primeiro e segundo graus, e que , portanto, os cursos de formação de professores de filosofia, no Brasil, deveriam da uma especial atenção ao Programa de Filosofia para Crianças do Professor Matthew Lipman.

BIBLIOGRAFIA:

01- ANTONIAZZI, Alberto. O filósofo volta ao mercado. Atualização, nº 9., p. 560-
566. 1978
02- ASSMAN, Hugo. Paradigmas educacionais e corporeidade. 2 ed. Piracicaba:
UNIMEP, 1995
03- ASSMAN, Hugo. Alguns toques na questão “O que significa aprender?” Impulso:
Revista de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Metodista de Piracicaba
Vol.10, 1997. N.º. 21. Págs.71-82
04- CABRAL, Roque. Filosofia no ensino secundário e na universidade.: continuidade
ou ruptura? Presença filosófica. Rio de Janeiro- Vol. XVI , nº 1. P. 109-114
05- CORDI, Cassiano et alii. Para filosofar. São Paulo: Scipione, 1995
06- GIANNOTTI, José Artur. Ser ou não ser professor de filosofia. Reflexão. Ano V, nº
p. 30-33. Set/dez, 1980
07- LAGUEUX, Maurice. Por que ensinar filosofia? Reflexão. Ano V, nº 18, p. 12-29
set/dez. 1980.
08- LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. Trad. Maria Elice de B. Prestes e Lucia S. Kremer. São Paulo: Summus, 1990
09- --------O pensar na educação. Trad. De Ann Mary Fighiera Perpétuo. Petrópolis: Vozes, 1995.
10- LIPMAN, Matthew, SHARP, Ann Margaret e OSCANYAN, Frederick S. A filosofia na sala de aula. Trad. Ana Luiza Falcone. São Paulo: Nova Alexandria, 1994
11- MARIA, Joaquim Parron. Novos paradigmas pedagógicos - para uma filosofia da educação. São Paulo: Paulus, 1996.
12- MORAIS, Regis de. Filosofia no 2o. grau: uma inovação que tomei aos antigos
Reflexão. Filosofia no 2o. grau. Campinas. Vol. XV. Nº 43. jan./abril/1989 p. 07

13- NAVIA. Ricardo J. El problema de la motivación en la enseñanza media de la
filosofia- La enseñanza media de la filosofia. Reflexão. Filosofia no 2o. grau.
Campinas. Vol. XV. Nº 43. p. 26-34. jan./abril/1989

LEIA OUTROS ARTIGOS DO PROFESSOR JUAREZ SOFISTE NO SITE:
http://www.ufjf.br/pensandobem

domingo, 29 de maio de 2011



O QUE FAZ UM PROFESSOR DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO?
Paulo Ghiraldelli Jr


Está arraigada na mentalidade dos professores a tese de que “na prática a teoria é outra”. Muitas vezes dizemos para os professores que eles estão errados ao pensarem isso. Mas, se refletirmos melhor, talvez seja certo concordar com eles, ao menos em parte.

O que está errado é dizer “na prática a teoria não funciona”. Mas, ao dizer “na prática a teoria é outra”, podemos sim estar dizendo alguma verdade. Ou seja, na prática há uma teoria, ainda que não seja, rigorosamente, a teoria proclamada. Marx dizia que o pior arquiteto ainda é melhor que a mais habilidosa aranha. Melhor e pior, para ele, era em função da teoria presente na consciência. Para ele, a aranha não tinha nenhuma teoria, não podendo variar sua teia a partir de um projeto mentalmente predeterminado, enquanto que um arquiteto, ainda que completamente inapto, mesmo assim faria suas construções a partir de um projeto adrede preparado mentalmente. A existência da elaboração de um projeto, de alguma teorização para agir, era o que fazia Marx elogiar o homem em detrimento da aranha. Talvez tenhamos que observar essa postura de Marx para entender a frase “na prática a teoria é outra”. Ou seja, na prática, a teoria proclamada por não estar vingando, mas que há alguma teoria vingando, não podemos ter dúvida. Uma prática humana, ou seja, uma ação pragmática ou uma práxis, envolve algum projeto, alguma teoria.

O problema, então, quando observamos a prática, é distinguir qual teoria é que está efetivamente sendo aplicada. A teoria proclamada é que dirige a ação ou há uma teoria não proclamada, não muito clara para os executores, conduzindo os feitos destes?

Em termos de pedagogia, essa segunda alternativa não é estranha. Os professores desenvolvem uma ação pedagógica segundo uma teoria educacional. Às vezes sentem que a educação nascida dali não está ocorrendo a contento. Decidem então que a teoria empregada não funciona. Mas, na verdade, ela funcionou mesclada com outras, não declaradas, que já estavam incorporadas aos hábitos de pensamento e ação do professor. Uma teoria desempenhou um papel na prática, ainda que esta teoria não seja aquela que o professor imagina ter aplicado.

Isso ocorre por uma questão simples: não se muda uma ação profissional facilmente. Alguém que tenta mudar sua ação profissional, sua prática, por conta de uma nova teoria, não vai fazê-lo da noite para o dia. E conforme o que se quer mudar, não ocorre a transformação esperada nem em uma ou duas ou três gerações. Na prática, uma série de pressupostos da teoria não proclamada (não raro, a teoria anteriormente instalada) dá suas cartas. Assim, a sensação que o professor tem é que sua prática não funciona porque ela não é mais a sua velha prática guiada por sua velha teoria, mas nem a nova. Ela é uma confluência do novo com o velho, gerando uma prática que pode, inclusive, ficar anulada por vetores teóricos que se colocam em direção, sentido e módulos contrários.

A disciplina Filosofia da Educação nos cursos de pedagogia e demais licenciaturas, quando ministrada por mim, nada é senão uma tentativa de levar o aluno – que não raro já exerce algum cargo no magistério, ou está prestes a exercer – a reconhecer na prática que ele desenvolve qual é a efetiva teoria que está guiando sua ação pedagógica e sua maneira a sua compreensão da legislação que lhe cai na cabeça. Para tal, eu tento dar-lhe um panorama das grandes concepções teóricas a respeito da infância e da pedagogia, principalmente as diversas facetas entre o universo romântico de Rousseau e o universo iluminista de Descartes. Acrescento a isso, então, as várias disputas entre a pedagogia da Escola Nova (que bebe no romantismo fortemente) e a pedagogia da Escola Tradicional.

O objetivo é fazer com que o aluno perceba que a frase que ele tanto gosta, “na prática a teoria é outra”, tem sua razão de ser, mas não pelo que ele a pronuncia e, sim, pelo fato da mentalidade dos professores, caoticamente, espelhar e se nutrir do embate entre essas duas grandes pedagogias que, na base, bebem do romantismo e do iluminismo, com as inúmeras consequências disso para a arquitetura da escola, para a legislação estatal, para o cotidiano de sala de aula e as opções didáticas e de literatura.

Parece simples, não? Era relativamente simples, quando meus alunos já vinham alfabetizados e com alguma noção de história, geografia etc. Têm se tornado difícil, agora que até mesmo a cultura pedagógica existente no Ensino Médio, por conta da Escola Normal (ou Habilitação Magistério ou qualquer coisa equivalente), já não existe mais. O fracasso da escola média de hoje, atrelada ao fim da formação para o magistério no ensino médio, tem trazido para nós um aluno cru para a pedagogia e para as licenciaturas. E assim, o que era um caminho bom para ministrar a disciplina Filosofia da Educação, tornou-se, como tudo, árduo demais. Quem fica nisso, nessa profissão, tem algum problema emocional grave. Algum tipo de culto ao masoquismo, talvez. Mas, enfim, não podemos reclamar. No Brasil, é um perigo reclamar, pois podemos dar de cara, no dia seguinte, com uma realidade pior. Em educação, estranhamente, o Brasil mostra cotidianamente que não tem fundo do poço.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Postado originalmente no site:
http://ghiraldelli.pro.br/2011/05/21/o-que-faz-um-professor-de-filosofia-da-educacao/

quinta-feira, 28 de abril de 2011

COMO SE ESCREVE UM ENSAIO DE FILOSOFIA



James Pryor
Universidade de Princeton

Escrever, em filosofia, é diferente do que se pede ao estudante para redigir noutros cursos. A maior parte das estratégias descritas abaixo será útil também quando o estudante precisar de escrever ensaios noutras disciplinas, mas não se deve presumir automaticamente que o seja, nem que as orientações dadas por outros professores serão necessariamente úteis quando se escreve um ensaio de filosofia; algumas dessas orientações são rotineiramente desconsideradas na boa prosa filosófica (por exemplo, veja-se as regras de gramática, abaixo).

O QUE SE FAZ NUM ENSAIO DE FILOSOFIA?

1. Um ensaio de filosofia consiste numa defesa argumentada de uma afirmação.
Os ensaios dos estudantes devem oferecer um argumento. Não podem consistir na mera exposição das suas opiniões, nem na mera apresentação das opiniões dos filósofos discutidos. É preciso que o estudante defenda as afirmações que faz e que ofereça razões para se pensar que são verdadeiras.
Assim, o estudante não pode simplesmente dizer:
A minha opinião é que P.
Deve antes dizer algo como:
A minha opinião é que P. Penso isto porque...
ou:
Penso que as considerações seguintes... oferecem um argumento convincente em defesa de P.
Da mesma forma, o estudante não deve dizer simplesmente:
Descartes afirma que Q.
Ao invés, terá de dizer algo como o seguinte:
Descartes afirma que Q; contudo, a seguinte experiência mental mostrará que não é verdade que Q...
Ou:
Descartes afirma que Q. Julgo que esta afirmação é plausível, pelas seguintes razões...
Um ensaio de filosofia pode ter vários objectivos. Geralmente começamos por apresentar algumas teses ou argumentos para consideração do leitor, passando de seguida a fazer uma ou duas das coisas seguintes:

* Criticar o argumento, ou demonstrar que certos argumentos em defesa da tese não são bons.
* Defender o argumento ou tese contra uma crítica.
* Oferecer razões para se acreditar na tese.
* Oferecer contra-exemplos à tese.
* Contrapor os pontos fortes e fracos de duas perspectivas opostas sobre a tese.
* Dar exemplos que ajudem a explicar a tese, ou a torná-la mais plausível.
* Argumentar que certos filósofos estão comprometidos com a tese por causa dos seus pontos de vista, apesar de não a terem explicitamente afirmado ou endossado.
* Discutir que consequências a tese teria, se fosse verdadeira.
* Rever a tese à luz de uma objecção qualquer.

É necessário apresentar explicitamente as razões que sustentam as nossas afirmações, independentemente de quais destes objectivos tenhamos em mente. Os estudantes geralmente sentem que não há necessidade de muita argumentação quando uma dada afirmação é para eles evidente; mas é muito fácil sobrestimar a força da nossa própria posição. Afinal de contas, já a aceitamos. O estudante deve presumir que o leitor ainda não aceita sua posição e tratar o ensaio como uma tentativa de persuadir o leitor. Por isso, não se deve começar um ensaio com pressupostos que quem não aceita a nossa posição vai com certeza rejeitar. Se queremos ter alguma hipótese de persuadir as pessoas, temos de partir de afirmações comuns, com as quais todos concordam.

2. Um bom ensaio de filosofia é modesto e defende uma pequena ideia, mas apresenta-a com clareza e objectividade, e oferece boas razões em sua defesa.
Muitas vezes, as pessoas têm demasiados objectivos num ensaio de filosofia. O resultado disto é, normalmente, um ensaio difícil de ler e repleto de afirmações pobremente explicadas e inadequadamente defendidas. Portanto, devemos evitar ser demasiado ambiciosos. Não devemos tentar chegar a conclusões extraordinárias num ensaio de 5 ou 6 páginas. Feita adequadamente, a filosofia avança em pequenos passos.

3. Originalidade
O objectivo dos ensaios escolares é demonstrar que o estudante entende o problema e é capaz de pensar criticamente sobre ele. Para que isto aconteça, o ensaio do estudante tem de revelar algum pensamento independente.
Isto não significa que o estudante tem de apresentar a sua própria teoria, ou que tenha de dar uma contribuição completamente original para o pensamento humano. Haverá muito tempo para isso no futuro. Um ensaio bem escrito é claro e directo (veja abaixo), rigoroso ao atribuir opiniões a outros filósofos (veja abaixo), e contém respostas ponderadas e críticas aos textos que lemos. Não é necessário inovar sempre.
Mas o estudante deve tentar trabalhar com os seus próprios argumentos, ou a sua maneira de elaborar, criticar ou defender algum argumento que viu nas aulas. Não basta simplesmente resumir o que os outros disseram.

TRÊS ESTÁGIOS DE REDAÇÃO

1. Primeiros Estágios
Os primeiros estágios de redacção de um ensaio de filosofia incluem tudo o que o estudante faz antes de se sentar para escrever o seu primeiro esboço. Estes primeiros estágios envolvem a escrita, mas o estudante ainda não vai escrever um ensaio completo. Pelo contrário, o estudante deve fazer anotações de leituras, rascunhos das suas ideias, tentativas para explicar o argumento principal que deseja avançar, e deve criar um esboço.

Discuta as questões com os outros
Como foi dito anteriormente, espera-se que ensaios dos estudantes demonstrem que ele entendeu o assunto que discutiu nas aulas e, mais ainda, que pode pensar criticamente sobre esse assunto. Uma das melhores maneiras de verificar a nossa compreensão da matéria das aulas é tentar explicá-la a quem não está ainda familiarizado com ela. Eu descobri repetidamente, enquanto ensinava filosofia, que não conseguia explicar adequadamente uma questão ou argumento que julgava ter entendido bem. Isto aconteceu porque o problema era mais complexo do que eu tinha percebido. O estudante terá a mesma experiência. Por isso, é bom que troque considerações com colegas e com amigos que não assistem às aulas, o que o ajudará a compreender melhor o que discutimos nas aulas e a identificar o que ainda não compreendeu inteiramente.
Será ainda mais proveitoso que os estudantes troquem considerações entre si sobre o que querem discutir nos seus ensaios. Quando as ideias do estudante estiverem suficientemente bem trabalhadas para que ele possa explicá-las oralmente, então ele estará pronto para se sentar e fazer um esboço.

Faça um esboço de trabalho
Antes de começar a escrever um rascunho, você precisa pensar sobre o que vai escrever: em que ordem deve explicar os diversos pontos a serem abordados? Em que pontos deve apresentar a posição ou argumento contrários? Em que ordem deve expor a crítica que faz aos argumentos ou posições contrárias? O que pretende discutir pressupõe outra discussão anterior? E assim por diante.
A clareza geral do seu ensaio dependerá em grande parte da sua estrutura. Por isso, é importante pensar sobre estas questões antes de começar a escrever.
Eu recomendo fortemente que, antes de começar a escrever, o estudante faça um esboço do ensaio e dos argumentos que vai apresentar, o que lhe será útil para organizar os pontos que quer abordar e para lhes dar uma direcção. Este procedimento também ajuda o estudante a assegurar-se de que pode dizer qual é seu argumento principal ou crítica, antes de se sentar para escrever um rascunho completo. Geralmente, quando os estudantes têm dificuldade em escrever, é porque ainda não compreenderam bem aquilo que estão a tentar dizer.
Dê toda a atenção ao esboço, que deve ser bem detalhado. (Para um ensaio de 5 páginas, um esboço adequado deve ter uma página inteira ou mesmo mais.)
Eu acho que fazer um esboço de trabalho representa pelo menos 80% do trabalho de escrever um ensaio de filosofia. Se faz um bom esboço, o resto do processo de escrita será muito mais tranquilo.

Comece logo a trabalhar
Os problemas filosóficos e a redacção filosófica exigem cuidado e reflexão complementares. O estudante não deve esperar até duas ou três noites antes da data de entrega para começar a escrever. Isto é tolo. Escrever um bom ensaio de filosofia exige um grande esforço de preparação.
O estudante precisa dar a si mesmo tempo suficiente para pensar sobre o tópico e escrever um esboço detalhado. Só então estará pronto para escrever um rascunho completo. Concluído o rascunho, abandone-o por um ou dois dias. Só então deve retomá-lo e reescrevê-lo várias vezes. Pelo menos 3 ou 4. Se puder, mostre-o aos seus amigos e observe as suas reacções. Eles compreendem os seus pontos principais? Há partes no seu rascunho obscuras ou confusas para eles?
Tudo isso leva tempo. Assim, o estudante deve começar a trabalhar nos seus ensaios assim que os tópicos estejam determinados.

2. Escreva um rascunho
Se o estudante já reflectiu sobre o seu argumento e criou um esquema para o ensaio, então está pronto para se sentar e escrever um rascunho completo.

Use uma linguagem simples
Não aposte na elegância literária. Use um estilo simples e directo; mantenha frases e parágrafos curtos e escolha palavras familiares. Se usar palavras rebuscadas onde as simples dariam conta do recado, os professores riem-se de si. As questões da filosofia são suficientemente profundas e difíceis sem que o estudante tenha de as enlamear com um linguagem pretensiosa ou verborreica. Não escreva num estilo que não usaria coloquialmente: se não se diz assim, não o escreva assim.
O estudante pode pensar que, uma vez que o professor de filosofia já sabe muito sobre o tema do ensaio, pode deixar de lado boa parte da explicação básica e escrever num estilo super-sofisticado, como um especialista que fala com outro. Garanto que este procedimento tornará o seu trabalho incompreensível.
Se o seu ensaio soar como se tivesse sido escrito para uma audiência da terceira classe, então provavelmente tem a clareza adequada.
Nas aulas de filosofia o estudante encontra por vezes filósofos cujo estilo é obscuro e complicado. Todos os que lêem este tipo de texto acham-no difícil e frustrante. Os autores em questão são filosoficamente importantes, apesar de a sua prosa ser má, e não por causa dela. Assim, não tente imitar esse tipo de prosa.

Torne óbvia a estrutura de seu ensaio

A estrutura do seu ensaio tem de ser óbvia para o leitor. Não obrigue o leitor a despender energias para a compreender. Ofereça as suas ideias de bandeja.
Como se pode fazer isso?
Antes de mais nada, use conectivos como os seguintes:

* Porque, uma vez que, dado o argumento.
* Logo, portanto, por conseguinte, segue-se que, consequentemente.
* Não obstante, todavia, mas.
* No primeiro caso, por outro lado.

Estes recursos ajudam o leitor a não perder a direcção da sua argumentação. Certifique-se que usa as palavras correctamente! Se disser "P. Portanto Q.", está a afirmar que P é uma boa razão para se aceitar Q. É melhor que isso seja mesmo assim. Se não for, os professores protestam. Não atire de qualquer maneira um "portanto" ou um "consequentemente" para fazer o seu pensamento parecer mais lógico do que realmente é.
Outro recurso que pode ajudá-lo a tornar óbvia a estrutura do seu trabalho é dizer ao leitor o que já fez até o momento e o que vai fazer em seguida. Pode dizer algo como o seguinte:

* Começarei por...
* Antes de dizer o que está errado com este argumento quero...
* Estas passagens sugerem que...
* Vou agora defender esta afirmação...
* Esta afirmação é também apoiada por...
* Por exemplo...

Estes indicadores fazem uma grande diferença. Considere os seguintes dois fragmentos de ensaios:

... Acabámos de ver como X diz que P. Vou agora apresentar dois argumentos a favor de não-P. O primeiro argumento é...
O segundo argumento a favor de não-P é...
X pode responder aos meus argumentos de várias formas. Por exemplo, poderia dizer que...
Todavia esta resposta falha, porque...
X também poderia responder a meu argumento afirmando que...
Esta resposta também falha, porque...
Assim, vimos que nenhuma das respostas aos meus argumentos a favor de não-P foi bem sucedida. Consequentemente, devemos rejeitar a afirmação de X de que P.
Vou defender a ideia de que Q.
Há três razões para se pensar que é verdade que Q. Primeiramente...
Em segundo lugar...
Em terceiro lugar...
A objecção mais forte a Q é que...
Todavia, esta objecção não é bem sucedida, pela seguinte razão...

Veja-se como é fácil reconhecer a estrutura destes ensaios. A estrutura dos ensaios dos estudantes deve ser igualmente fácil.
Uma observação final: deixe sempre muito claro quando expõe suas opiniões ou, ao contrário, quando apresenta a opinião de algum filósofo que estiver discutindo. O leitor não deve ficar em dúvida sobre a autoria das afirmações que faz em um dado parágrafo.
O estudante não conseguirá tornar óbvia a estrutura do seu ensaio se não souber que estrutura é essa, ou se o ensaio não tiver nenhuma. Por isso é tão importante fazer um esboço de trabalho.

Seja conciso, mas explique-se completamente
Para escrever um bom ensaio de filosofia, precisamos de ser concisos. Ainda assim, temos de explicar completamente os nossos pontos de vista.
Pode parecer que estas exigências nos empurram em direcções opostas (é como se a primeira dissesse "Não fale muito," e a segunda dissesse "Fale muito") mas, se as compreender adequadamente, verá que é possível atender a ambas.

* Os professores insistem na concisão porque não querem ver o estudante a divagar a respeito de tudo o que conhece de um determinado tema, tentando mostrar como é inteligente e culto. Cada ensaio deve tratar de uma única questão ou problema específico. Certifique-se de que trata efectivamente desse problema em particular. O que não se referir especificamente ao problema a ser tratado não deve constar do seu ensaio. Elimine tudo o resto. É sempre melhor concentrar-se em um ou dois pontos e desenvolvê-los em profundidade do que falar de tudo. Um ou dois caminhos claros funcionam melhor que uma floresta impenetrável.

Formule, no início do artigo, o problema ou questão central que deseja tratar, e mantenha-o em mente o tempo todo. Esclareça qual é o problema, e por que razão é um problema. Certifique-se de que diz apenas o que é relevante para o tema central e de que informa ao leitor da relevância do que vai tratar. Não o obrigue a adivinhar.

* O que quero dizer com "explique-se completamente" é que, quando temos um tópico para explorar, não devemos simplesmente atirá-lo numa frase. Explique-o; dê um exemplo; esclareça de que forma esse tópico ajuda o seu argumento.

Mas "explique-se completamente" também significa ser tão claro e explícito quanto possível quando estiver a escrever. Não é uma boa ideia protestar, depois de o professor ter corrigido o seu artigo, dizendo "Eu sei que disse isso, mas o que queria dizer é..." Diga exactamente o que pretende. Parte da nota que receberá terá sido em função da capacidade para dizer o que quer dizer.
Faça de conta que o leitor não leu o material que está a discutir, e que não reflectiu muito sobre ele, o que obviamente não será verdade. Mas, se o estudante escrever como se isto fosse verdade, sente-se forçado a explicar termos técnicos, ilustrar distinções estranhas ou obscuras, e ser tão claro quanto possível quando resumir o que os outros filósofos disseram.

* Será bastante útil levar este primeiro passo mais além e fingir que o seu leitor é preguiçoso, tolo e maldoso. Preguiçoso, porque não quer se esforçar para descobrir o que as suas frases embrulhadas querem dizer, nem qual é seu argumento, se não não for completamente evidente. Tolo, porque terá de explicar-lhe, de forma simples e pormenorizada, tudo o que disser. Maldoso, porque não vai ser caridoso ao ler seu artigo. (Por exemplo, se disser qualquer coisa que permita mais de uma interpretação, ele vai presumir que dissemos a menos plausível.) Se o estudante compreende a matéria sobre a qual está a escrever, e se direcciona seu artigo para este tipo de leitor, provavelmente conseguirá ter uma nota muito elevada.

Use muitos exemplos e definições
É muito importante usar exemplos num ensaio de filosofia. Boa parte das afirmações que os filósofos fazem são muito abstractas e de difícil compreensão, e os exemplos são a melhor forma de as tornar mais claras.
Os exemplos são também úteis para explicar os conceitos que ocupam um papel central no argumento do estudante. Procure deixar clara a maneira como os entende, mesmo que sejam recorrentes em discursos do dia-a-dia. Tal como são usados no dia-a-dia podem não ter um significado suficientemente claro ou preciso. Por exemplo, suponha que está a escrever um ensaio sobre o aborto, e quer sustentar que "Um feto é uma pessoa." O que quer dizer com "pessoa"? O que quer dizer com "pessoa" vai determinar fortemente se esta premissa será ou não aceitável para o leitor. Também fará uma grande diferença no efeito persuasivo do seu argumento. Em si, o seguinte argumento não tem valor:

Um feto é uma pessoa.
É errado matar uma pessoa.
Logo, é errado matar um feto.

Não tem valor porque não sabemos o que o autor pretende dizer ao afirmar que um feto é uma pessoa. Segundo algumas interpretações de "pessoa", pode ser óbvio que um feto seja uma pessoa. Em contrapartida, será bastante controverso se, no mesmo sentido de "pessoa", matar for sempre algo errado. Segundo outras interpretações, é mais plausível que seja sempre errado matar pessoas, mas totalmente confuso se um feto pode ser entendido como "pessoa." Assim, tudo resulta no que o autor pretende dizer com "pessoa". O autor tem de ser explícito a respeito do uso desse conceito.
Num ensaio de filosofia, podemos dar às palavras um sentido diferente do usual, mas teremos de deixar claro que estamos a fazer isso. Por exemplo, alguns filósofos usam a palavra "pessoa" significando qualquer ser capaz de pensamento racional e auto-consciência. Entendido desta forma, animais como baleias e chimpanzés podem perfeitamente ser entendidos como "pessoas". Não é este o significado que comummente damos a esta palavra; comummente, só os seres humanos são "pessoas". Mas está muito bem usar "pessoa" neste sentido, se esclarecermos o que queremos dizer com este termo. O mesmo acontece com quaisquer outras palavras deste género que usemos nos nossos ensaios.

Não diversifique o vocabulário em benefício da variedade. Se referimos algo como "X" no começo do ensaio, temos de continuar a referir-nos a isso como "X". Por exemplo, não comece por falar sobre "a perspectiva de Platão sobre o ego", mudando para "a perspectiva de Platão sobre a alma", e depois para "a perspectiva de Platão sobre a mente". Se se refere à mesma coisa nos três casos, use só um nome. Em filosofia, uma ligeira mudança no vocabulário indica geralmente a intenção de nos referirmos a outra coisa.

Como usar palavras com significados filosóficos precisos? Os filósofos dão a muitas palavras comummente usadas significados técnicos precisos. Certifique-se de que usa essas palavras correctamente. Não use palavras que não compreende bem. Use termos filosóficos técnicos somente quando forem necessários. Não há necessidade de explicar termos filosóficos gerais como "argumento válido" e "verdade necessária". Mas deve explicar quaisquer termos técnicos cujo uso conduza ao tópico específico que está a discutir. Assim, por exemplo, se usar quaisquer termos especializados como "dualismo" ou "fisicismo" ou "behaviorismo," deve explicar o seu significado. Proceda da mesma forma se usar termos técnicos como "sobreveniência" e outros semelhantes. Mesmo quando os filósofos profissionais escrevem para outros filósofos profissionais têm de explicar o vocabulário técnico especial que estão a usar. Pessoas diferentes às vezes usam o vocabulário especial de diferentes formas, por isso é importante ter certeza de que os nossos leitores dão a estas palavras o mesmo significado. Faça de conta que seus leitores nunca as ouviram antes.

Como apresentar e avaliar pontos de vista alheios
Se temos em mente discutir as opiniões do filósofo X, temos de começar por descobrir quais são os seus argumentos ou pressupostos centrais. Para alguma ajuda nesse sentido, vejam-se as indicações que dou em Como Ler um Texto Filosófico.
De seguida, pergunte a si mesmo: os argumentos de X são bons? Os seus pressupostos são apresentados com clareza? São plausíveis? São pontos de partida razoáveis para o argumento de X, ou ele deveria ter oferecido algum argumento independente?
Certifique-se de que entende exactamente o que a posição que está criticando diz. Os estudantes perdem muito tempo a argumentar contra opiniões que parecem indicar o que supõem estar sendo afirmado, mas na verdade dizem outra coisa. Lembre-se: a filosofia exige um alto nível de precisão. Não basta simplesmente entender a ideia geral da posição ou argumento de alguém. Temos de compreender rigorosamente o que está a ser dito. (Neste aspecto, a filosofia está mais próxima da ciência do que as outras humanidades.) Boa parte do trabalho em filosofia consiste em certificarmo-nos de que compreendemos bem a posição de quem discordamos.
Podemos presumir que o nosso leitor é tolo (veja-se acima), mas não devemos tratar o filósofo ou as posições que estamos a discutir como tolas. Se o fossem, não estaríamos a discuti-las. Se não conseguimos ver nenhuma plausibilidade na posição que estamos a refutar, talvez não tenhamos muita experiência em pensar e argumentar sobre ela e ainda não compreendemos inteiramente por que motivos os seus proponentes a defendem. Procure esforçar-se um pouco mais para descobrir o que os motiva.
Os filósofos às vezes dizem coisas perturbadoras, mas se a opinião que você está atribuindo a um filósofo parece obviamente louca, então deve reflectir melhor e descobrir se ele realmente diz o que você acha que diz. Use a imaginação. Tente descobrir que opinião razoável o filósofo poderia ter tido em mente, e dirija seus argumentos contra ela.
Nos nossos ensaios temos sempre de explicar qual é a perspectiva X que queremos criticar, antes de fazê-lo. Se não o fizermos, o leitor não poderá julgar se a crítica que oferecemos a X é boa, ou se apenas se baseia em uma má interpretação ou má compreensão do ponto de vista de X. Assim, diga ao leitor o que acha que X afirma.
Contudo, não tente dizer ao leitor tudo que sabe sobre o ponto de vista de X. O estudante também tem de ter espaço para oferecer sua própria contribuição filosófica. Resuma apenas aquelas partes da posição de X que são relevantes para o que pretende fazer.
Às vezes precisamos de argumentar em defesa das nossas interpretações do que X diz, citando passagens que a confirmem. E é aceitável que queiramos discutir uma opinião que julgamos ser de um filósofo, ou que poderia ter sido, apesar de nos textos desse filósofo não haver nenhuma indicação directa desse ponto de vista. Quando fizermos isto, todavia, devemos explicitamente dizer que o fazemos. Diga algo como:

O filósofo X não afirma explicitamente que P, mas parece que o presume porque...

Citações


Quando uma passagem de um texto for particularmente útil para apoiar a sua interpretação do ponto de vista de algum filósofo, pode ajudar se citar directamente a passagem. (Especifique de onde retirou a passagem.) Todavia, as citações directas devem ser usadas com parcimónia. Raramente é necessário citar mais do que umas poucas frases. Frequentemente será mais apropriado parafrasear o que X diz, do que citá-lo directamente. Quando parafraseamos o que outra pessoa disse, temos de nos certificar que é claro que estamos a fazer isso (e também neste caso temos de citar as páginas onde se encontram as passagens que estamos a parafrasear).
As citações nunca devem ser usadas com um substituto da nossa própria explicação. Quando citamos um autor, temos de explicar o que a citação diz com as nossas próprias palavras. Se a passagem citada contém um argumento, temos de o reconstruir em termos mais explícitos e directos. Se a passagem citada contém uma afirmação ou pressuposto principal, temos de indicar qual é. Pode ser que queiramos usar exemplos para ilustrar a posição do autor. Por vezes, é necessário distinguir a opinião do autor de outras com as quais pode ser confundida.

Paráfrases

Às vezes, quando os estudantes tentam explicar o ponto de vista de um filósofo, fazem-no através de paráfrases muito próximas às próprias palavras do filósofo. Mudam algumas palavras, omitem outras, mas geralmente ficam muito próximos do texto original. Por exemplo, Hume começa o seu Tratado Sobre o Entendimento Humano da seguinte forma:

Todas as percepções da mente humana se dividem em dois tipos distintos, a que irei chamar impressões e ideias. A diferença entre eles consiste no grau de força e vivacidade com que afectam a mente e entram no nosso pensamento ou consciência. Àquelas percepções que entram com mais força e violência podemos chamar impressões; e sob este nome eu abranjo todas as nossas sensações, paixões e emoções, tal como primeiro surgem na alma. Por ideias entendo as imagens mais fracas destas impressões no pensamento e no raciocínio.

Aqui está um exemplo de como não se deve parafrasear:

Hume diz que todas as percepções da mente se dividem em dois tipos: impressões e ideias. A diferença está na intensidade da força ou vivacidade que têm nos nossos pensamentos e na nossa consciência. As percepções com maior força e violência são impressões: são as sensações, paixões e emoções. As ideias são imagens fracas de nosso pensamento e raciocínio.

Há dois problemas principais com paráfrases deste tipo. Em primeiro lugar, são feitas mecanicamente. Não demonstram que o autor compreendeu o texto. Em segundo lugar, uma vez que o autor ainda não compreendeu bem o que o texto quer dizer de modo a expressá-lo pelas suas próprias palavras, há o risco de inadvertidamente alterar o significado original do texto. No exemplo acima, Hume diz que as impressões "afectam a mente" com mais força e vivacidade do que as ideias. Mas a paráfrase diz que as impressões têm mais força e vivacidade "nos nossos pensamentos". Não é óbvio que isto seja a mesma coisa. Além disso, Hume diz que as ideias são imagens fracas das impressões; mas a paráfrase diz que as ideias são imagens fracas do nosso pensamento, o que não é a mesma coisa. Assim, o autor da paráfrase parece não ter compreendido o que Hume diz.
Um modo muito melhor de explicar o que Hume diz aqui seria o seguinte:

Hume afirma que há dois tipos de "percepções" ou estados mentais, a que chama impressões e ideias. Uma impressão é um estado mental muito "forte", como a impressão sensorial que alguém tem ao olhar uma maçã vermelha. Uma ideia é um estado mental menos "forte", como a ideia que se tem de uma maçã quando pensamos sobre ela sem a ver. Não é claro o que Hume quer dizer com "forte". Pode querer dizer que...

Antecipe objecções
Tente antecipar objecções ao seu ponto de vista e responda-lhes. Por exemplo, se você objectar contra a opinião de algum filósofo, não presuma que ele admitiria imediatamente que estava enganado. Imagine qual poderá ser a contra-objecção desse filósofo. E como poderá responder a essa contra-objecção?
Não tenha receio de mencionar objecções à sua própria tese. É melhor que nós mesmos apresentemos objecções do que pressupor que o leitor não vai pensar nelas. Explique como acha que estas objecções podem ser contraditas ou superadas. Certamente não é possível, com frequência, responder a todas as objecções que se possa levantar. Assim, concentre-se naquelas que parecem mais fortes ou mais importantes.

O que acontece se ficarmos encravados?

Os nossos ensaios nem sempre têm de dar uma solução definitiva para um problema, ou uma resposta directa, do tipo sim ou não, para o problema levantado. Muitos ensaios excelentes de filosofia não oferecem respostas directas. Às vezes argumentam que o problema precisa de ser clarificado, ou que certos problemas adicionais precisam de ser levantados. Outras vezes, argumentam que certos pressupostos precisam de ser desafiados. Outras vezes, ainda, argumentam que certas respostas ao problema são fáceis demais, isto é, não funcionam. Assim, se estes ensaios estiverem correctos, o problema será de resolução muito mais complexa do que poderíamos ter pensado. Estes resultados são todos importantes e filosoficamente valiosos.
Portanto, não há problema em fazer perguntas e levantar problemas nos nossos ensaios, mesmo que não possamos dar respostas satisfatórias a todos. Podemos deixar algumas perguntas não respondidas no final do ensaio. (Mas temos de deixar claro para o leitor que algumas questões ficarão propositadamente sem resposta.) E devemos dizer algo sobre como a questão poderia ser respondida, e o que torna a questão interessante e relevante para o tema em causa.
Se alguma coisa na abordagem que estamos a investigar não ficou clara, não a devemos disfarçar. Pelo contrário, devemos chamar a atenção para a falta de clareza e sugerir diferentes formas de a compreender. Temos ainda de explicar por que razão ainda não se pode dizer quais destas interpretações é a correcta.
Se apresentamos duas opiniões e, após um exame cuidadoso, não conseguimos decidir entre elas, tudo bem. Não há problema em dizer que os pontos fortes e fracos destas opiniões têm igual força, mas note-se que isto também é uma afirmação que exige explicação e defesa ponderada, como qualquer outra. Devemos apresentar razões que a apoiem, mas estas razões têm de ser suficientemente boas para eventualmente persuadir quem não acha que as duas opiniões têm igual força.
Às vezes, ao escrever, descobrimos que os nossos argumentos não são tão bons como pareciam no início. Podemos ter encontrado uma objecção a um argumento a que não conseguimos dar uma boa resposta. Não é caso para entrar em pânico. Se há uma dificuldade com o nosso argumento que não conseguimos resolver, temos de tentar descobrir por que razão não podemos fazê-lo. Não há problema em mudar a nossa tese para outra que seja defensável. Por exemplo, ao invés de escrever um ensaio que apresenta uma defesa inteiramente sólida da perspectiva P, podemos mudar de ideias e escrever um ensaio que seja mais ou menos assim:

Segundo uma perspectiva filosófica, P. Esta perspectiva é plausível, pelas seguintes razões...
Todavia, há algumas razões para duvidar se será verdade que P. Uma destas razões é X. X levanta um problema à opinião de que P porque...
Não é claro como o defensor de P pode superar esta objecção.

Ou podemos escrever um ensaio da seguinte forma:

Um argumento a favor de P é o "Argumento da Conjunção", que funciona como se segue...
À primeira vista, este argumento é bastante atraente. Todavia, falha pelas seguintes razões...
Podemos tentar corrigir o argumento, da seguinte maneira...
Mas estas correcções não funcionam, porque...
Concluo que o Argumento da Conjunção na verdade não consegue estabelecer que P.

Escrever um ensaio desse tipo não significa que nos "rendemos" à posição contrária. Afinal, nenhum destes ensaios nos compromete com a perspectiva não-P. São apenas justificações honestas da dificuldade de se encontrar argumentos conclusivos a favor de P. Mas pode ser que mesmo assim P seja verdade.

3. Reescreva, e continue a reescrever
Depois de termos escrito um rascunho completo do nosso ensaio devemos deixá-lo de lado por um dia ou dois. Então, devemos retomá-lo e relê-lo. À medida que for lendo cada frase, diga a si mesmo coisas como:

"Esta afirmação realmente faz sentido?" "Isto não está claro!" "Isto é pretensioso." "O que quer isto dizer?" "Qual é a conexão entre estas duas frases?" "Estou a repetir-me?", e assim por diante.

Certifique-se que todas as frases do seu rascunho fazem falta e livre-se daquelas que não fazem falta. Se não consegue identificar a contribuição de uma frase qualquer para a sua discussão central, livre-se dela, ainda que pareça boa. Nunca devemos inserir questões a mais nos nossos ensaios, a menos que sejam importantes para o argumento principal e que haja espaço para explicá-las.
Se não estiver satisfeito com alguma frase, pergunte a si mesmo por que razão essa frase o incomoda. Pode ser que não tenha entendido bem o que está a tentar dizer, ou que não acredite realmente no que está a afirmar.
Temos de nos certificar de que nossas frases dizem exactamente o que queremos dizer. Por exemplo, suponha-se que escrevemos "O aborto é o mesmo que assassinato". É isso realmente o que pretendemos dizer? Então, quando Oswald assassinou Kennedy, ele estava a fazer o mesmo do que a abortar Kennedy? Ou queremos dizer outra coisa qualquer? Talvez queiramos dizer que o aborto é uma forma de assassinato. Numa conversa, é razoável esperar que alguém entenda o que queiramos dizer, mas não deve escrever dessa maneira. Ainda que o nosso professor de filosofia consiga entender o que queremos dizer, está mal escrito. Na redacção filosófica, é preciso dizer exactamente o que se pretende.
Procure, ainda, prestar atenção à estrutura de seu esboço. Quando for revê-lo, é muito mais importante trabalhar na estrutura e clareza geral do trabalho do que ocupar-se em apagar uma frase ou palavra. Certifique-se de que seu leitor sabe qual é sua afirmação principal e quais são seus argumentos a favor dela. Temos de garantir que os nossos leitores são capazes de dizer qual é o ponto principal de cada parágrafo. Não basta que nós o saibamos. É preciso que seja óbvio para o leitor, mesmo para um leitor preguiçoso, tolo e maldoso.
Se puder, mostre o rascunho do seu ensaio a amigos ou colegas de curso e recolha alguns argumentos e conselhos. Recomendo vivamente que o faça. Os seus amigos compreendem os seus pontos principais? Há trechos obscuros ou confusos para os outros no seu rascunho? Se os seus amigos não são capazes de compreender tudo que escreveu, o professor também não o será. Os seus parágrafos e seu argumento podem parecer perfeitamente claros para si e não fazer sentido para mais ninguém.
Outra maneira boa de verificar seu rascunho é lê-lo em voz alta, o que o ajudará a perceber se é coerente. Nós podemos saber o que queremos dizer, mas o que pretendemos dizer pode não estar realmente escrito. Ler o ensaio em voz alta ajuda-nos a perceber falhas no nosso raciocínio, digressões e trechos obscuros.
Saiba que precisará de escrever muitos rascunhos de seu artigo. Pelo menos 3 ou 4!

QUESTÕES MENORES

Começar a escrever
Não comece com frases do tipo "Ao longo dos tempos, a humanidade tem reflectido sobre o problema do...". Não há necessidade de aquecimento. Vá directo ao ponto, na primeira frase.
Não inicie igualmente o artigo com frases do tipo "O dicionário Webster define alma como...". Os dicionários não são boas autoridades no campo da filosofia. Eles registam a maneira como as palavras são usadas no dia-a-dia, mas muitas destas palavras têm significados diferentes, especializados, na filosofia.

Gramática

* Não devemos evitar repetições, se para as evitarmos obscurecemos o texto. Falar de Aristóteles, e depois de "o estagirita" e depois de "o discípulo de Platão" só para não repetir o nome de Aristóteles em nada ajuda a compreender o texto.
* Evite deselegâncias gramaticais que dificultam a compreensão, como frase passivas ("A doutrina da imortalidade da alma foi aceite por Platão desde muito cedo" é muito mais difícil de perceber do que a activa: "Desde muito cedo que Platão aceitou a doutrina da imortalidade da alma.")
* Podemos usar livremente a primeira pessoa nos nossos ensaios, sobretudo para marcar a diferença entre o relato do que dizem os outros filósofos e o que nós pensamos do que eles dizem. É mais claro dizer "Julgo que o cogito de Descartes é uma falácia subtil" do que dizer "Julgamos que o cogito de Descartes é uma falácia subtil".
* Procure usar frases declarativas e assertivas simples, evite perguntas de retórica, exageros e hipérboles. É mais claro dizer "Julgo que este argumento está errado." do que dizer "Será que alguém pensa que este argumento está certo?".
* Procure usar claramente os conectivos lógicos da linguagem. É mais claro dizer "Se a vida não tem sentido, não há valores morais" do que dizer "Considerando que a vida não tem sentido, somos forçados a concluir por necessidade que a existência de valores morais tem de ser uma ilusão". Domine o uso das conjunções (e), disjunções (ou), condicionais (se…, então…), negações (não) e bicondicionais (…se, e só se,…). Domine também o uso dos quantificadores (todos, alguns, pelo menos um, um e um só, etc.).

Leituras secundárias

Na maioria das disciplinas, há leituras complementares. Trata-se de leituras opcionais, e devem ser fruto de estudo independente.
Não precisamos de usar estas leituras complementares quando estamos a redigir um ensaio. O objectivo do ensaio é ensinar o estudante a analisar um argumento filosófico e a apresentar os seus próprios argumentos a favor ou contra uma dada conclusão. Os argumentos que estudamos nas aulas são, por si, suficientemente complexos para merecer toda a atenção do estudante.

Podemos escrever o ensaio como um diálogo ou um conto?
Não. Bem feitas, essas formas de redacção filosófica podem ser bastante eficientes. É por isso que nas aulas estudamos alguns diálogos e contos. Mas são extremamente difíceis de se fazer bem. É fácil cair na imprecisão e no uso de metáforas pouco claras. É preciso dominar os métodos comuns de redacção filosófica antes de se conseguir fazer um bom trabalho com estas formas mais difíceis.

Observações técnicas
Procure manter-se dentro do limite de número de palavras; nem mais, nem menos. Ensaios muito longos são tipicamente demasiado ambiciosos, ou repetitivos, ou cheios de digressões. A classificação dos estudantes sofrerá negativamente se os ensaios tiverem qualquer um destes defeitos. Por isso, é importante perguntar a si mesmo quais são as coisas mais importantes que tem de dizer, e o que pode ser deixado de fora.
Mas o seu ensaio também não deve ser demasiado curto! Não corte abruptamente um argumento. Se o tópico que escolheu levanta certos problemas, assegure-se de que lhes responde.
Use espaço duplo nos ensaios, numere as páginas e inclua margens largas. Um ensaio académico não deve ter capas de plástico, fotografias com cores, etc.; deve valer pela sofisticação do conteúdo e pela sobriedade da apresentação.
Coloque o seu nome no ensaio, e guarde uma cópia para si! (Estas coisas deveriam ser óbvias, mas aparentemente não são.)

COMO SERÁ CLASSIFICADO
Os estudantes são classificados com base em três critérios básicos:

1. Qual é o grau de compreensão dos assuntos do ensaio?
2. Que qualidade têm os argumentos que oferece?
3. A redacção é clara e bem organizada?

Os professores não avaliam o seu trabalho a partir de uma possível concordância com sua conclusão. Pode ser que venhamos a discordar entre nós sobre qual seria a melhor conclusão, mas não teremos dificuldade em concordar que tenha feito um bom trabalho argumentando a favor de sua conclusão.
Mais especificamente, faremos perguntas como as seguintes:

* O estudante afirma claramente o que pretende com seu artigo? A sua tese principal é óbvia para o leitor?
* O estudante oferece argumentos que apoiem as suas afirmações? É óbvio para o leitor quais são esses argumentos?
* A estrutura do ensaio é clara? Por exemplo, é fácil perceber que partes de seu artigo são exposições de ideias e que partes são sua própria contribuição positiva?
* A prosa é simples, fácil de ler e de fácil compreensão?
* O estudante ilustra as suas afirmações com bons exemplos? Explica as noções principais? Diz exactamente o que quer dizer?
* O estudante apresenta as opiniões de outros filósofos de forma precisa e caridosa?

Os comentários que mais frequentemente tenho feito aos artigos dos meus estudantes são os seguintes:

* "Explique esta afirmação" ou "O que quer dizer com isto?" ou "Não compreendo o que está a dizer aqui".
* "Esta passagem não está clara (ou confusa, difícil de ler)." "Complicado demais." "Difícil de acompanhar." "Simplifique."
* "Por que razão afirma isto?" "Há necessidade de argumentos mais fortes aqui." Por que razão devemos acreditar no que diz?" "Explique por que razão isto é uma razão para se acreditar em P." "Explique por que razão isto se segue do que disse antes."
* "Irrelevante."
* "Dê um exemplo."

Tente antecipar estes comentários e evite que o professor os tenha de fazer!

Responder a comentários do professor
Quando tiver a oportunidade de reescrever um artigo corrigido pelo professor, mantenha as seguintes observações em mente.
Os textos que reescrever devem tentar superar os erros específicos e problemas indicados pelo professor. Se teve uma nota baixa, então seu rascunho estava, de um modo geral, difícil de ler, era difícil reconhecer o seu argumento, a estrutura do ensaio, e assim por diante. Só pode corrigir falhas como essas refazendo totalmente o trabalho. (Abra um novo documento no seu processador de texto.) Use o rascunho e as observações do professor para construir um novo esboço, e escreva a partir dele.
Tenha em mente que quando o seu professor dá uma nota a um ensaio reescrito ele pode reparar em falhas que deixou escapar na primeira leitura, em partes que não foram alteradas. Talvez estas falhas afectem a impressão geral de seu trabalho, mas o professor não deu nenhuma recomendação específica de como corrigi-las. Por isso, tente melhorar todo o trabalho, não apenas as passagens que o professor comentou.
É possível melhorar um ensaio sem que esta melhoria seja suficiente para garantir uma nota superior à primeira. Às vezes isso acontece. Mas espero que consiga fazer melhor.
Normalmente, não terá a possibilidade de reescrever seus ensaios depois de terem sido corrigidos. Por isso, precisa se disciplinar para escrever um rascunho, examiná-lo cuidadosamente, revê-lo e reescrevê-lo antes de o entregar ao professor.

James Pryor


Agradecimentos:

Não quero atribuir crédito falso a este trabalho. A minha contribuição consistiu, na sua maior parte, em coligir e organizar sugestões de outras pessoas. Boa parte dos conselhos que apresento aqui foi tomada de empréstimo dos apontamentos de amigos e colegas. (Alison Simmons e Justin Broackes merecem crédito especial.) E é de esperar que eu tenha encontrado alguns destes conselhos ao ler outros guias deste género na Internet. Tenho muita pena de não ter registado essas dívidas.
Tradução de Eliana Curado
O original deste texto está em http://www.princeton.edu/~jimpryor/general/writing.html.

Reproduza livremente mas, por favor, cite a fonte.

terça-feira, 19 de abril de 2011

OS CAMINHOS DA FENOMENOLOGIA

Newton Aquiles von Zuben (*)



A obra da Prof. Elcie Masini, "0 Perceber e o relacionar-se do carente Visual' - em sua parte metodológica inspirada na Fenomenologia, traz à discussão mais uma vez a questão dos caminhos do movimento fenomenológico.

Reconhecida como uma das mais notáveis manifestações filosóficas deste século, a Fenomenologia inaugurada por Edmund Husserl, desperta ainda grande interesse não só por parte dos filósofos, mas também por parte de cientistas sociais e educadores.

A história é feita de pensamento em ato, e pensar esses pensamentos é filosofar.

Em seu início, o projeto husserliano despertou ceticismo. As suas "Investigações lógicas" publicadas em 1900-1901 provocaram, no pensamento filosófico, uma revolução decisiva porém lenta. Seu caráter eminentemente abstrato e especulativo dificultou a leitura e compreensão. Com esta obra encaminhou Husserl, em 1905, sua candidatura ao cargo de Professor Ordinário (titular) na Universidade de Gõttingen. Foi rejeitado. A razão alegada pelo Conselho da Universidade: "falta de interesse científico". Fica patente, hoje, que a comissão examinadora não compreendeu o que leu, supondo, naturalmente, que tenha conseguido ler! Algo mudou, no entanto, pois no ano seguinte Husserl conseguiu o cargo pleiteado. No início de sua trajetória encontramos Husserl preocupado com a questão do fundamento absoluto das ciências e com o ideal da Filosofia como ciência rigorosa, sendo a Fenomenologia a filosofia capaz de cumprir a tarefa de fundamentação das ciências.

No final de sua vida, no entanto, Husserl, na sua obra "A crise das ciências européias e a Fenomenologia Transcendental", revê sua própria posição. O diagnóstico de crise formulado às ciências tem um sentido ético e antropológico. Tais ciências ao não se interessarem pela questão do próprio fundamento, desviam-se também da subjetividade humana. "Às questões feitas sobre o sentido ou a ausência de sentido da existência humana, indaga Husserl, sobre a razão e a não-razão, sobre nós mesmos enquanto sujeitos de liberdade, o que a ciência tem a nos dizer?"

Considerada um mito, ou mais recentemente uma moda, é necessário compreender, afirma Merleau-Ponty no prefácio à sua Fenomenologia da Percepção, o prestígio desse mito e a origem dessa moda; a sociedade filosófica traduzirá tal situação, dizendo que a Fenomenologia se deixa praticar e reconhecer como maneira e como estilo, ela existe como movimento, antes de ter chegado à completa consciência filosófica.

Com seu projeto Husserl tentou elaborar um fundamento radical para a Filosofia e para as ciências. A Fenomenologia nas trilhas da busca da evidência herdada de Descartes - evidência que para Husserl deveria ser apodítica, vale dizer, imune a qualquer dúvida - como método de evidenciação, conduzida pela pedra angular de seu método que é a redução, não conseguiu impor-se de modo indubitável. Tal método das reduções, através da 'epoché' não despertou interesse em nenhum dos seguidores.

As reduções, através da "epoché" (suspensão do juízo, colocação entre parênteses) visavam basicamente a mudança de atitude. A atitude natural, onde vivemos espontaneamente e consideramos os objetos como exteriores à consciência, existentes em si, deve transformar-se, pelas reduções, numa atitude transcendental para a qual a realidade exterior, (transcendente), dos objetos era colocada entre parênteses, pela suspensão do juízo sobre sua existência real (exterior), sendo, então, estes objetos considerados como meramente significados - os objetos intencionados.

Pela "epoché' o que é posto entre parênteses é a nossa certeza espontânea na realidade transcendente, isto é, exterior à consciência. Para Husserl o fundamento absoluto deveria estar no objeto enquanto consciente - noema -, pois a consciência do objeto exterior (noese) é mais evidente do que o próprio objeto exterior. A crença no objeto exterior é praticamente certa, porém, como o filósofo não pode contentar-se com certezas meramente práticas, deve buscar uma certeza numa evidência apodítica. O campo de investigação está, então, estabelecido para Husserl: será o campo da consciência pura e seus estados, frente ao objeto puro, o objeto intencional, o fenômeno. Estamos no âmago do idealismo transcendental fenomenológico. A teoria fenomenológica do objeto intencional - a coisa como revelada à consciência, como fenômeno - é uma forte crítica ao idealismo enquanto considera essa realidade como meramente idealizada, fruto da consciência. Husserl sustenta um idealismo metódico, somente ao nível da atitude transcendental. Ele não é idealista ao nível da atitude natural.

Muito se tem escrito sobre a Fenomenologia; tem sido ela muito criticada. Tais leituras e críticas externas não conseguem muitas vezes nem perceber a falha de sua argumentação. Primeiro pela generalização, considerando a Fenomenologia como um sistema monolítico, fechado, não vendo que ela é, antes um movimento, um caminho que se lança em várias direções. Segundo, reduzem a Fenomenologia às obras de Husserl. A crítica externa elabora sempre uma caricatura do objeto a ser criticado, a partir de seus próprios supostos. A crítica externa se reduz a um confronto de forças, a um esforço em 'fazer valer um ponto de vista parcial contra outros pontos de vista não menos parciais, ela é, então, polêmica sectária' (Hegel). Além de apresentar uma ineficácia prática, toda crítica externa revela uma incapacidade radical de transformar o objeto de crítica ao desqualificar, de antemão, qualquer exigência de crítica interna. A crítica externa na sua ineficácia, nada faz senão abandonar a razão substituindo-a pela violência desmistificadora, deixando intacto o objeto da crítica e leva a tachar o pensamento filosófico criticado como insignificante.

A reação provocada pelo projeto husserliano foi notável, a ponto de levar Paul Ricoeur, o mais eminente fenomenólogo vivo, a afirmar que a história da fenomenologia é a história de uma heterodoxia. Eugen Fink, aluno e último colaborador de Husserl considera estranho que todos os efeitos notados da fenomenologia não provêm de uma compreensão concreta mas se sustentam sobre apropriações periféricas da obra de Husserl.

As críticas contemporâneas não lograram, segundo Fink, compreender o verdadeiro sentido do projeto husserliano. Muitas foram as etiquetas atribuídas à fenomenologia de Husserl: lógica, ciência eidética, teoria do conhecimento, idealismo, intuicionismo dogmático. E, curiosamente, cada uma dessas denominações pode encontrar fundamento em uma ou outra passagem das obras de Husserl. O sentido próprio central da fenomenologia permanece, no entanto, desconhecido. (Fink, De Ia phénoménologíe, p. 177). Muitos consideram Husserl como uma vítima de seu próprio anseio de radical evidenciação. "Pôr tudo rigorosamente entre parênteses, afim de parar na mera significação, equivale a afirmar que se significa, ultimamente, aquilo que não existe, e portanto, aquilo que não se pode significar" (Fragata, J. - "Problemas da fenomenologia de Husserl" p. 41).

Diversos filósofos se inspiraram nas intuições de Husserl e em seu projeto, e teceram com suas reflexões próprias, os caminhos da fenomenologia. Todos porém sentiram a necessidade de depurá-la do idealismo transcendental. Heidegger salientou os inconvenientes da "atitude transcendental"'(em nota ao artigo de Husserl publicado na Encylopaedia Britannica) e a incompreensão do "eu absoluto ". A proposta husserliana, através do método de evidenciação que impunha aos filósofos e aos cientistas, manterem-se na atitude transcendental, transcendendo a atitude natural, não teve prosseguimento para os seus seguidores. Porém, como método descritivo analítico-reflexivo, teve aceitação não só no âmbito da filosofia mas também nas ciências humanas sobretudo na psicologia.

Heidegger, primeiro assistente de Husserl, afirma em seu "Ser e Tempo" : "as explicitações do conceito preliminar de fenomenologia demonstraram que o que ela possui de essencial não é ser uma "corrente' real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende primeiramente de se apreendê-la como possibilidade. ' (p. 69-70, edição brasileira).

Eis a primeira heterodoxia.

Merleau-Ponty, no citado prefácio, afirma: "É em nós mesmos que encontramos a unidade da fenomenologia e seu verdadeiro sentido". E mais adiante, "Apropriar-se do projeto fenomenológico não é reinstaurar por um jogo hermenêutico a tarefa atribuída à filosofia por Husserl, não é buscar as significações tanto de ordem filosófica como de ordem metodológica estabelecidas, não é rever a trajetória da obra de Husserl recuperando, pelos meandros das diversas temáticas, o entrelaçamento das vias iniciadas e interrompidas' (cf. von Zuben, N.A.: "A fenomenologia em questão: desafios de um projeto' ' em "Paradigmas filosóficos da atualidade' (org. por Carvalho, M.C. - Editor-a Papirus).

Merleau-Ponty nos deixou um legado: a perplexidade perante o mundo e o anseio constante em reaprender a ver esse mundo. Ele percebeu o caráter inacabado da fenomenologia. Aliás, o próprio Husserl já reconhecera, no fim da vida, este inacabamento e o caráter incoativo de sua reflexão, quando, com fino humor e modéstia, declarava que se lhe fosse concedida a idade de Matusalém poderia ainda aspirar à elaboração de uma filosofia e tornar-se um 'filósofo ". Percebeu-se, ao contrário, como um eterno principiante, observando diante de si a "terra prometida" da verdadeira filosofia. Está aqui patente a fenomenologia como ,,possibilidades".

Merleau-Ponty via no inacabamento da fenomenologia não o índice de um fracasso ou de indefinição, mas o próprio reconhecimento de sua fertilidade e de sua autêntica tarefa: "revelar o mistério do mundo e o mistério da razão' (prefácio). É, aliás, neste prefácio, que se pode, no meu entender, apreender a sua concepção de filosofia que ele denominou fenomenologia retomando por sua conta e reassumindo por força de sua criatividade as trilhas iniciadas por Husserl.

Paul Ricoeur, por sua parte, opera verdadeira subversão da fenomenologia, pois é o mundo em geral, e os textos (que a "epoché" colocara entre parênteses) que se converte no núcleo temático no qual a reflexão se funda. Merleau-Ponty já observara também a impossibilidade de redução total. Para ele a redução, ao invés de nos distanciar da realidade do mundo nos faz lançar para ele. Para Ricoeur, a atividade reflexiva se transforma igualmente, quanto à função que lhe era atribuída, tanto na filosofia reflexiva quanto na fenomenologia. Para a filosofia reflexiva e para a fenomenologia o problema residia na compreensão de si como sujeito de operações intelectuais, volitivas, etc. Pelo enxerto da hermenêutica, para Ricoeur, abandona-se a ilusão fenomenológica do eu transcendental e a atividade reflexiva é doravante entendida como atividade interpretativa de símbolos e sinais nos quais o eu se objetiva. A reflexão não é intuição nem compreensão direta de si: Ela é mediatizada pelos sinais e símbolos. Ricoeur evita a "via curta" trilhada por Heidegger e toma a "via longa "através do desvio pelos símbolos. No entanto, tornando-se hermenêutica, a fenomenologia parece ter mostrado em Ricoeur uma tendência, imoderada pela linguagem e pelos jogos ilimitados que esta permite, explorando quase que exclusivamente as incitações retóricas das palavras (a hermenêutica dos textos) sem se preocupar com um possível "hors-langage" um fora-de-linguagem. Não poderia ser um certo enclausuramento na linguagem?

Isso se entende, uma vez que a fenomenologia se situa no seio de uma tradição filosófica cujo eixo central é a dimensão logo-teórica do homem. Logos - discurso e theorein - contemplação.

O primado da teoria remonta aos primórdios da filosofia grega, que afirmava a vida contemplativa como a mais eminente, a mais elevada. A vida contemplativa prevalecia sobre a vida prática. O saber foi ao longo da história ocidental identificado com um projeto teórico. Esta teoria se apresentava igualmente em um logos, um discurso racional.

O homem, ao interrogar-se sobre o real, sobre sua essência, sua origem, seu fim, fala. Aristóteles o qualificou "zoon logon echon", isto é, o homem é um ser falante, um ente de linguagem. A linguagem pressupõe toda questão e toda resposta. A diferença específica do homem se situa na sua capacidade de linguagem. O saber é então uma logo-teoria, discurso e contemplação. Tal foi a característica da ciência clássica. Pela natureza teorética impôs-se o privilégio absoluto do olhar, da visão (Theorein). É este privilégio que a ciência moderna veio romper, com suas principais características que são a experimentação e a matematização, duas formas do operatório. Bacon e Descartes recusando o saber livresco e especulativo da escolástica reafirmaram o poder operativo da ciência moderna. Mas esta questão ultrapassa os âmbitos deste texto.

A fenomenologia, desde Husserl até os seus desdobramentos, pode ser fértil contribuição às Ciências Humanas, como esta também contribuiu com o pensar fenomenológico. "0 problema das ciências humanas, anota Lyotard, não é subsidiário ao pensamento fenomenológico. Pode-se dizer ao contrário, que em certo sentido, se encontra no seu centro. Com efeito, é a partir da crise do psicologismo, do sociologismo, do historicismo que Husserl empreende a tentativa de restituir a validade à ciência em geral e às ciências humanas "( A fenomenologia, pag.47)

Muitos cientistas, sobretudo da área das ciências humanas têm, com efeito, buscado na fenomenologia um suporte, subsídios metodológicos, ou até um parceiro de diálogo, visando a auto-reflexão crítica, responsável pelo clima de mais rigor nas investigações, clima esse em grande parte, tributário do impulso do projeto fenomenológico de Husserl.

Para Lyotard, "a fenomenologia constitui uma introdução lógica às ciências humanas, enquanto procura definir-lhe eideticamente o objeto, anteriormente a qualquer experimentação e uma retomada filosófica dos resultados da experimentação, na medida em que procura apreender-lhe a significação fundamental em especial quando procede à análise crítica da ferramenta mental utilizada. Num primeiro sentido, a fenomenologia é a ciência eidética correspondente às ciências humanas empíricas (em especial a psicologia); num segundo sentido, instala-se no âmago destas ciências, no coração do fato, assim realizando a verdade da filosofia, que consiste em extrair a essência do interior do próprio concreto: é então, o revelador das ciências humanas (idem p.50).

A fenomenologia busca uma volta ao que é efetivamente vivido. " Ora, ainda observa Lyotard, para apreender o que é efetivamente vívido, importa ater-se a uma descrição que abrace estreitamente as modificações da consciência: o conceito de certeza, proposto por Stuart Mill para descrever a verdade como vivida de consciência, não se dá de modo algum conta do que é realmente vivido. É então patente a necessidade de uma desfio de consciência extremamente fina e maleável, cuja hipótese de trabalho é a redução fenomenológica. " (idem, p. 48-49).

Desculpe-me o caro leitor, estas citações um tanto longas, mas senti sua pertinência para se poder perceber como a obra da Prof- Elcie está atenta às contribuições metodológicas da fenomenologia, entendendo-a corretamente como ,possibilidade". Acertada, a meu ver, a escolha de seu principal inspirador e interlocutor, Merleau-Ponty.

O trabalho da Profa Elcie Masini visa a orientação da educação do portador de deficiência visual. Sem dúvida é um trabalho de especial relevância para a literatura educacional atual tanto quanto eu possa perceber. O tema é relevante, atual, o tratamento é rigoroso, evitando a linguagem sofisticada e esotérica. Nota-se sua segurança ao dialogar com diversos autores da área especializada, e sua fértil leitura da Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty. Creio que se pode considerar tal investigação como realização de uma "possibilidade" da fenomenologia.

A própria temática levou-a desde logo à denúncia severa e pertinente de uma situação paradoxal na qual, ingenuamente, instalaram-se e instalam-se a maioria se não a totalidade da literatura atual existente. Trata-se do referencial utilizado para lidar com o portador de deficiência visual. Tal referencial teórico e as práticas que nele se fundam, têm sido elaboradas com o amparo de um referencial próprio ao "vidente' . Aceitaram, sem mais a tradição logo-teórica segundo a qual o conhecimento se funda de modo eminente no olhar, na visão (theorein = contemplar, ver).

A rigor, mais do que arbitrária no caso, tal situação tem um aspecto de totalitária, não se preocupando com a "diferença" na medida em que é insensível à alteridade. O normal, o sábio é o que vê. Impor ao deficiente visual as estruturas do mundo "visto" ou "visível ", chega a constituir-se num contrasenso, anulando até o próprio projeto educacional voltado para o deficiente visual que é considerado a partir de sua deficiência e não de sua possibilidade e de sua potencialidade. Tais concepções apresentam-se como racionalizações, inserindo-se, de fato, na vertente logo-teórica da cultura ocidental não podem deixar de salientar o "olhar" como o sentido por excelência, mediante o qual o homem relaciona-se com aquilo que é, com o ser. Em outros termos, isso leva a considerar a temática das relações do cognoscente com a realidade como girando, de modo eminente, em torno do "olhar" ' - da luz - o homem como lumen naturale -. O homem, ser do olhar é também aquele que fala o seu olhar. Este princípio é universal, uma vez que considera-se como fazendo parte da essência do homem. Tal princípio, por ser universal, é abstrato e constitui-se sobre o esquecimento e o encobrimento das diferenças individuais. Aí se encontra a racionalização. Leva, além disso, a uma homogeneisação que, por isso, não está isenta de riscos ao eliminar a diferença a diversidade. Assim o diferente é desprezado como inferior, anormal, a-racional. Em vez de desprezar o diferente o que se impõe é compreender a diferença. É exatamente o contrário que é proposto por estas atuais concepções sobre o assim denominado "deficiente visual ". Ao elidir a busca de compreensão da diferença optam pela via curta, a da razão preguiçosa, da racionalização. Tal razão é fechada, redutora, na medida em que rejeita uma parte da realidade que é assim encarada como contingente. Ao desviar-se da compreensão da diferença, levam, mesmo que de modo involuntário, à rejeição do singular que é esmagado sob a generalidade opressora. Levam à desvalorização do "não vidente ". Aliás, a própria expressão "deficiente visual " 'pode refletir uma degenerescência, uma anomalia, uma carência, assim como a razão fechada lança ao inassimilável a des-razão. O alargamento da razão nos leva a reconhecer o a-racional. Para a vertente do olhar erigido como senhor absoluto na ordem do conhecimento, o não-olhar, o a-teórico seria o anômalo, o impossível, impróprio, incapaz de alçar-se ao patamar do teórico, da contemplação, em suma da ciência. Não seria preferível ater-se a conotação de carência, na expressão 'deficiência visual " e privilegiar seu caráter de diferente? Pois, o não-olhar, o não vidente não são absurdos ou racionais, simplesmente são. O "não-olhar" é uma outra maneira de ser-no-mundo.

A Profa Elcie elabora, sem dúvida, urna subversão na área da educação do não-vidente inspirada pelas reflexões de Merleau-Ponty que, embora se situem ainda na perspectiva logo-teórica, permitem, com suas reflexões sobre a corporeidade, um alargamento da percepção, do conhecimento, além do logo-teórico, do contemplativo -, o olhar.

O que busca a Profa. Elcie em sua obra? 'Compreender o aluno em situações de sala de aula, nas suas características próprias de pensar, sentir, agir'. Para ela o "caminho adequado" lhe foi indicado pela "Daseim-analyse' que tenta aproximação com o existir humano para poder compreendê-lo. (Outra possibilidade da fenomenologia). O mundo da vida cotidiana, o pré-refietido, será a base para a tarefa de recuperação, pela reflexão, da compreensão do existir. Atenção ao fenômeno, tal como aparece. Inspirada nas meditações de Merleau-Ponty expostas em sua Fenomcnologia de Percepção, Dra. Elcie Masini, por tê-lo assimilado bem, não deixa de provocar uma subversão da fenomenologia, alargando pelas suas competentes pesquisas com o ' existir" do não-vidente, a noção de percepção. Elabora, também, assim uma subversão na própria concepção da educação do não-vidente. Sua cuidadosa leitura da literatura referente a Educação especial e à educação do "deficiente visual" lhe permite elaborar uma crítica, como já me referi acima, ao 'desvio" daquelas teorias, vale dizer, de seus fundamentos equivocados por não levarem na devida conta a realidade específica do não-vidente. Consideram, ao lado do 'normal " - o vidente - o "deficiente visual "como o incorreto, "fora do certo", 'carente' esquecendo-se que uma das possibilidades do "ser-no-mundo" é o ser não-vidente. A educação que lhe é proposta é uma educação compensatória. Equivocam-se no seu suporte, ao falharem a aproximação para conhecer o aluno naquilo que lhe é próprio - seu agir, seu sentir, suas experiências, seu pensar, seu 'ser-no-mundo não vidente".

Em certo momento de seu trabalho, a Profa. Elcie resgata o significado do conceito de "orientação ". Seria demasiada ousadia de minha parte, chegar a pensar que tais teorias na área de educação do "deficiente visual " apesar de tentarem oferecer orientação pecam justamente por carência de orientação. Eis aí a carência da Selbstbesinnung da fenomenologia, a auto-reflexão crítica. Falharam na origem da construção de seu edifício. E isso pode ser fatal! Grande edifício construído em fundação frágil. Recordo a observação sagaz e irônica de Kierkgaard ao referir-se ao esplendidamente bem construído palácio que Hegel havia edificado (o de sua filosofia); pena que o homem mesmo habitava numa cabana!

Como acertadamente observa a Profa. Elcle (p. 78 de sua obra): na orientação de um aluno, para deixá-lo revelar-se em sua própria forma de ser, o educador preciso pois estar atento à maneira dele (aluno) perceber e explicar o que o rodeia; organizar o que apreende; comunicar-se com os outros e com o meio que o cerca.

A força original desta obra não reside tão somente em sua denúncia crítica dos pressupostos mal fundados das teorias vigentes.

Reconhecendo as dificuldades do caminho, ela avança, de modo ao mesmo tempo prudente mas decidido, apontando um projeto de orientação do "não-vidente" para professores especializados. Alia, desta maneira, a teoria à prática, superando a primazia da teoria.

E mais, o vigor de suas análises e propostas não se revelam a partir de, e não se fundam sobre pressupostos meramente especulativos ou metafísicos. Vinculam-se a um princípio, a um "arché" oriundo da experiência vivida. Aplica-se a esta obra, sem dúvida, a observação de Hannah Arendt em sua obra "Entre o passado e o futuro": "meu pressuposto é que o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência vivida e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação".

Sem dúvida, aprenderá muito o leitor com a obra da Profa. Elcie Masini. É, na verdade, uma contribuição de significado especial na literatura educacional contemporânea.



(*) Publicado como prefácio à obra de MASINI, E. F. S. O perceber e o Relacionar-se do Deficiente Visual. Brasilia. 1994. CORDE.


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© Newton Aquiles von Zuben
Doutor em Filosofia - Université de Louvain
Professor Titular - Faculdade de Educação da UNICAMP
E-mail: navzuben@obelix.unicamp.br

FONTE: http://www.fae.unicamp.br/vonzuben/caminhos.html

ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido.  Fonte:    http://www. intermedi a. uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep        ...