domingo, 21 de julho de 2019

ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido. Fonte:  http://www.intermedi
a.uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep
        Por Ana Idalina Carvalho Nunes

1. Van Gennep: da  infância  à juventude 
Vale iniciar este breve traçado biográfico de Charles-Arnold van Gennep Kurr, deixando claro que há, segundo Rosemary Zumwalt (1982),  um desencontro de informações acerca do nascimento de Van Gennep: por causa do seu nome e do nome da cidade onde nasceu  - Ludwigsburg, no reino de Württembern. Nascido em  23 de abril de 1873, tinha como pai um  tenente que descendia de imigrantes franceses, e como  mãe uma descendente de holandeses com inúmeros parentes franceses. Como seus pais se separaram ainda na infância, aos seis anos de idade, Van Gennep foi viver com a mãe em Lyon, casando-se, mais tarde, com um cirurgião chamado Paul Raugé. Existem textos, no entanto, que apontam que Van Gennep nasceu na Alemanha, no ano de 1873, filho de pai holandês e de mãe francesa. Ele morreu em 1957.
Não  se sabe ao certo se Van Gennep foi adotado como filho por Paul Raugé mas, de acordo com a Enciclopédia Internacional de Ciências Sociais (Sills 1968),  Paul Raugé adotou Gennep como filho e a fundamentação desta hipótese está no fato de que Gennep sempre citava Raugé como pai, chegando a assumir  o sobrenome do padrasto em algumas publicações, embora, oficialmente, ele nunca tenha chegado a receber tal sobrenome. (K. VAN GENNEP, 1964: 15-16 apud ZUMWALT, 1982).
Na escola que frequentou em Lyon, Van Gennep logo ganhou a fama de “terrível”. Aos  10 anos foi transferido para uma escola em Paris, sendo transferido um ano depois para um internato em Nice, já que  seus pais se mudaram para o sul da França. Segundo Rosemary Zumwalt, em Nice ele era reconhecido por ter uma conduta ruim, mas  um excelente rendimento escolar, tendo até mesmo recebido prêmios para bolsas de estudos. (GENNEP, 1914: 122 apud ZUMWALT, 1982). Recebeu seu diploma de “Filosofia e ciências restritasaos 19 anos de idade. Era um aluno brilhante. Havendo Van Gennep concluído seus estudos, seu padrasto passou a manifestar o desejo de vê-lo cursando cirurgia em Lyon, mas ele queria  estudar cirurgia em Paris. Van Gennep acabou optando pelo serviço diplomático, área na qual  ele poderia utilizar seus dotes linguísticos – ele falava dezoito línguas diferentes. Desta forma, ele se matriculou na Escola de Altos Estudos em Paris.  (K. VAN.GENNEP, 1964: 5, apud ZUMWALT, 1982), e acabou conhecendo uma jovem pela qual se apaixonou e com quem acabou se casando mais tarde. Tratava-se de uma  jovem pobre, razão pela qual os pais se opuseram ao casamento, levando a um rompimento de Gennep com eles.

2.  O trabalho de pesquisa etnográfica, a construção da obra.

Van Gennep casou-se em 1897, passando a atuar como professor em um liceu polonês, e também a residir com a esposa em Czentochowa, Polônia, de 1897 até 1901, quando  retornou à França, passando a  atuar como  chefe de traduções no Ministério da Agricultura, cargo que ocupou até 1908. A partir de então, passou a buscar formas alternativas de trabalho para manter a família, proferindo palestras e trabalhando com tradução. Além disso ainda publicou artigos para a seção de Etnografia – Folclore - Religião- Pré-história  da “Mercure de France”, da qual foi colaborador de 1927 a 1933 (LECOTTE 1958: 178, apud ZUMWALT, 1982). 
As informações sobre a vida e trajetória de Van Gennep são muito restritas. Embora tenham havido inúmeros  trabalhos realizados por ele, a divulgação de sua obra acabou sendo focada em duas áreas de interesse:  etnologia e folclore. Os primeiros trabalhos publicados consistiram numa mesclagem dos dois temas. A primeira parte de sua dissertação para École des Hautes Études, por exemplo,  foi publicada em 1904 sob o título “Tabou et totémisme à Madagascar”. Depois disso, um outro livro foi publicado:  Mythes et légendes d'Australie, datado de 1906. Entre julho e agosto de 1911, e entre abril e junho de 1912, Van Gennep  esteve na Argélia, empreendendo um  trabalho de campo  (GENNEP, 1914: 7, apud ZUMWALT). Isto teve um impacto no seu trabalho posterior, e também resultou em várias publicações. Para  a realização  de seu trabalho de campo na Argélia, Van Gennep disse que foi às “próprias aldeias, permanecendo lá por algum tempo e conduzindo assim um inquérito completo passo a passo "(Idem: 127-128).   Entretanto, o trabalho de pesquisa naquele território o deixou  bastante decepcionado, por se deparar com a reclusão islâmica de mulheres, já que eram elas que produziam a cerâmica e  que teciam os tecidos. Contudo, mesmo diante de sua impaciência com a reclusão religiosa e cultural das mulheres, ele acabou se ajustando, passando a investir um empenho ainda maior na investigação, passando a vagar pelas ruas de Kasbah de Argel, para melhor observar os artesãos.
Seus primeiros trabalhos foram de extrema importância para a constituição do seu trabalho posterior que, depois de  1924, passou a lançar luz sobre o folclore francês. Essa foi a chave  para o que viria mais tarde,  o “Les ritos de passagem”.  Segundo o etnógrafo francês, as pesquisas sobre folclore que veio a publicar tanto no “Dauphiné” como no “Savoie” e em outras regiões demostravam muito bem o que seria a teoria geral do seu consagrado Ritos de passagem. Em todas as demonstrações que fizera em 1909,  em todo o mundo, abordando todas as civilizações - da mais primitiva à mais evoluída -, abordando cada mudança de lugar geográfico ou social, tudo, toda a inovação e até mesmo todas as modificações apareciam,  segundo Van Gennep, acompanhadas por ritos.  E esses ritos sempre seguiam a mesma ordem, constituindo um ripo de esquema dos ritos de passagem. (GENNEP, 1932: 31, apud ZUMWALT, 1982). Para validar a sua teoria sobre esses ritos de passagem, ele  tomou a decisão de se concentrar no folclore de algumas regiões da França (principalmente Savoie), em comparação com o estudo do folclore europeu, juntamente com o estudo etnográfico e folclórico de não-culturas europeias (GENNEP, 1937: 123-124, apud ZUMWALT, 1982).  Vale aqui ressaltar que a ideia de folclore, em Van Gennep, está fundada na definição europeia. Desta forma, a etnografia realizada foi o estudo da cultura não-europeia; o estudo do folclore representou, na verdade, o estudo dos camponeses da Europa. Também é importante frisar que o conceito americano de folclore diferia do conceito europeu em dois pontos. Primeiramente, tal estudo sobre o folclore não estava restrito às populações rurais europeias, mas também abrangeu os indígenas americanos, negros e outros grupos de imigrantes dos Estados Unidos. Em segundo lugar, é preciso observar a ênfase na pesquisa sobre o folclore americano, que se deu mais sobre a narrativa folclórica, na arte verbal, como diz Willian Bascom.

3. O conflito entre Van Gennep e os durkheimianos

No referente à relação do etnógrafo com Marcel Mauss, sabe-se que quando saiu seu primeiro livro, Van Gennep ainda tinha um bom relacionamento com ele, que era um dos nomes de maior destaque da escola durkheimiana. No prefácio de Tabou et tot E misme à Madagascar (1904), Van Gennep disse: "Por fim, agradeço ao meu amigo Marcel Mauss por ter me dado muitas referências úteis e por ter tido tempo para ler as minhas provas " (Van Gennep 1904: 2). Entretanto, em  1906, Gennep e Mauss,  passaram a discordar sobre o tema do totemismo, tabu e também sobre a classificação das narrativas. A questão presente era sempre a da definição.  Aliás, a discordância entre Van Gennep e os durkheimianos  se referiam, principalmente às interpretações do totem e à posição do indivíduo na sociedade, especificamente no Sociedade "primitiva". E esse desacordo acabou, com a publicação de livros, comentários, enfim, com o passar do tempo, acabou transformando-se em uma divisão total ente Gennep e o grupo de Durkheim.   Van Gennep  nunca perdeu a chance de lançar críticas ao trabalho de Durkheim e da escola da sociologia francesa. A publicação, a partir de 1917,  de artigos de Van Gennep  sobre a história das religiões (1920) bem como o problema do totemismo, culminaram a disputa de Van Gennep com os Durkheimianos, acerca do  totemismo. 
Um dos poucos historiadores que se dedicaram à obra de  Durkheim, observa o conflito existente com Van Gennep, comentando que  "o mais devastador dos críticos antropológicos de Durkheim foi o grande etnógrafo e folclorista Arnold Van Gennep que criticou As formas elementares em ambos fundamentos teóricos e empíricos "(LUKES,  1972: 524, apud ZUMWALT, 1982). As críticas que Van Gennep fez a Durkheim tiveram início tão logo saiu a publicação de  seu primeiro livro em 1904; e as críticas não eram apenas uma reação ao   As Formas Elementares da vida religiosa, publicado por Durkheim em 1912. De acordo com Van Gennep, o que a obra de Durkheim tinha de mais frágil era a parte etnográfica, já que Durkheim utilizava, em sua pesquisa, dados muito questionáveis sobre a Austrália.  Van Gennep declara que Durkheim trata o material recolhido na pesquisa como se os comentaristas dos textos sagrados que ele aborda fossem grandes conhecedores, sem se perguntar se o material fornecido era digno de confiança. Chega a declarar que  ele próprio havia utilizado as mesmas monografias australianas  que Durkheim utilizava em  seu trabalho, e que sabia que não eram fontes confiáveis. De acordo com Van Gennep, os informantes eram, muitas vezes, "agentes da polícia, funcionários coloniais obscuros, missionários, etc.  Ele tinha certeza de que a parte etnográfica da obra de Durkheim seria rejeitada, afirmando que  todas as generalizações construídas por ele no grupo de dados etnográficos consistia no mais fraco que há havia visto. Van Gennep mostrava-se contrário à ideia de que os povos primitivos tinham uma sociedade simples e relativamente primitiva, da forma como Durkheim apresentava. Para ele, a ideia de Durkheim era totalmente errada e, na medida em que se busca entender melhor os australianos, torna-se mais claro que, longe de serem simples e primitivas, as sociedades australianas eram muito mais evoluídas, considerando-se que seguem suas próprias direções. (GENNEP, 1913: 389, apud ZUMWALT, 1982). É importante, contudo, ressaltar que, mesmo diante da tensão que existiu entre eles, houve o compartilhamento de  um espaço comum: o de trazerem uma nova visão para as ciências sociais.  A diferença e o conflito entre eles foi o referente à abordagem: enquanto,  para Durkheim, a sociologia consistiu na preocupação central, para Van Gennep, a etnografia representou o foco.
Importante também lembrar que a insistência de Van Gennep  em estudar os fatos da civilização, desde os mais períodos primitivos, sob a abordagem biológica, seguindo os métodos da embriologia e das ciências naturais comparativas,  fazendo uma oposição ingênua tanto ao método histórico como ao método sociológico, acabou levando-o  a ser considerado, por um longo tempo, como um pária, sendo deixado de lado pelo meio acadêmico. Entretanto, de acordo com sua filha, Kelly Van Gennep, , "as preocupações e aborrecimentos nunca o perturbaram: ele os colocou de lado" (K. VAN GENNEP 1967: 9, apud ZUMWALT, 1982), prosseguindo com seu trabalho e sua capacidade de produzir, que acabaram sendo beneficiados pelo fato de ele não ter sido consagrado na vida acadêmica, o que lhe proporcionou maior  tempo para estudar e escrever - como um pesquisador oficial, dificilmente teria tido liberdade para trabalhar as próprias ideias. . Seu único compromisso acadêmico foi na Universidade de Neuchatel, Suíça.  Esse contraste que existiu entre a intensa vida que ele teve como pesquisador, com muitos artigos publicados e a ausência de reconhecimento acadêmico na França, acaba lançando um véu de mistério sobre sua vida. Embora ele proferido palestras em numerosas universidades, nenhuma delas se encontravam em França. Ainda assim, Van Gennep  ofereceu orientação e incentivo  para um grupo de estudiosos e também recrutou muitos jovens para o estudo do folclore.  Foi um estudioso que revelou um apego emocional e intelectual ao homem, havendo estimulado muitos outros estudiosos através do seu exemplo.
 4. Os ritos de passagem

Em sua obra principal, “Les Rites de Passage”, publicada em 1909, Van Gennep traça uma comparação entre as  cerimônias que celebram o período de  transição entre um estado e outro na vida das pessoas numa determinada sociedade.  Na observação dessa transição comum em todas as sociedades, ele identifica um tipo de sequência  que inclui "separação", "transição" e "incorporação". Segundo ele, a forma de representação simbólica da morte e reencarnação que se mostra nesses ritos, demonstra muito bem  os princípios de renovação indispensáveis a qualquer sociedade humana. Em outras palavras, ele apresenta interpretações do significado desses  ritos como maneiras de a sociedade se regenerar, tendo como base os símbolos naturais como morte e renascimento. De acordo com ele, a própria vida exige que hajam passagens de uma a outra sociedade, de uma a outra situação social, de maneira que a vida do indivíduo  acaba consistindo em uma sequencia de etapas, terminando e começando partes que são de uma natureza igual como, por exemplo, nascimento, puberdade, casamento (GENNEP, 2011, p. 26). Ou seja, o ser humano vai ultrapassando as  fronteiras que dividem uma e outra idade, tanto quanto os diversos acontecimentos de sua existência humana, passando da infância para a puberdade, da puberdade para a vida  adulta e assim por diante. Tanto quanto as etapas da idade, existem também os acontecimentos sociais da via como o batizado, casamento, formatura, entre outros. O que ele deixa claro é que, ao superar essas etapas simbólicas, o ser humano passa pelos ritos de passagem,  que proporcionam a ele a consciência das mudanças em sua vida. Entretanto, mais do que representar simplesmente uma transição particular para a pessoa, esses ritos de passagem representam  a aceitação progressiva e a aceitação, tanto como sua participação no grupo social. Por meio de situações de civilizações várias, Van Gennep,  através de exemplos recolhidos em civilizações muito diversas, coloca em evidência a analogia que existe entre as  manifestações ocorridas nos  ciclos de vida do indivíduo, no ciclo familiar, na passagem do tempo, na mudança das estações do ano, no findar e nascer dos dias, nas etapas das tarefas. De acordo com ele, em qualquer sociedade, a vida individual

consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra. Nos lugares em que as idades são separadas, e também as ocupações, estas idades, esta passagem é acompanhada por atos especiais, que, por exemplo, constituem para nossos ofícios a aprendizagem, e que entre os semicivilizados consistem em cerimônias  (GENNEP, 2011 p. 26).

Desta forma, os “ritos de passagem” passam a conferir sentido à passagem pelas sucessivas etapas da vida das pessoas, demarcando o antes e o depois – um depois que se configura através da segmentação do cotidiano. Para Van Gennep,  tanto no que se  refere à sociedade quanto ao indivíduo , a vida é uma contínua desagregação e reconstituição, uma permanente mudança de estado e de forma, um constante ato de morrer e nascer de novo. E há sempre novos limiares que precisamos atravessar.  E através das três fases identificadas pelo etnólogo na passagem dos ritos, a saber: inclui "separação", "transição" e "incorporação",  o indivíduo, na primeira fase é “separado‟ do fluxo de sua vida cotidiana, ficando isolado do grupo do qual faz parte. Na segunda fase, ele se desestrutura, perde o equilíbrio e passa a viver uma vida “à margem” por estar vivendo um período de transição. E, finalmente, na terceira fase, depois de consumada a passagem, ele volta a viver normalmente em sociedade, através da “incorporação” ou “agregação”. A partir de então ele  passa a assumir a nova condição. Desta maneira, a posição de maior importância é expressa pela interseção entre os universos, a “margem” ou “limiar” – uma região neutra que “flutua entre dois mundos” (GENNEP, 2011 p. 36).
Vale ressaltar que as fronteiras que se apresentam para serem ultrapassadas aparecem em forma, tanto de formas naturais como montanhas, lagos, rios ou árvores, como também podem aparecer  por construções humanas, feitas com a intenção de serem barreiras, como, por exemplo,  postes ou muros. Traçando uma analogia, pode-se dizer que a passagem pelas escalas do espaço – o país, a cidade, a aldeia ou mesmo uma simples casa, também constituem obstáculos a serem ultrapassados. O limiar, que é a zona neutra que define o limite, fica correspondendo à porta dos muros que dividem as cidades ou a própria casa. Assim, a pessoa que vive imersa dentro de uma limiaridade muito duradoura e profunda  acaba mudando de comportamento e, na busca pela inserção em um novo estado ou espaço, o comportamento desta pessoa, através de um trabalho duro e cansativo para conseguir  se inserir num novo espaço, passa a adquirir uma nova característica, se retempera. Ou seja, no desenvolvimento da dinâmica da passagem, vivencia a “separação” (estágio pré-limiar), experimenta a “margem” (estágio “limiar”) para, enfim, terminar o processo da passagem, vivendo a “agregação” (estágio pós-limiar) dentro do novo universo, da nova condição de vida ou situação.
Van Gennep apresenta a classificação dos ritos em dezesseis possibilidades de classificação, ressaltando que o rito pode apresentar diversas interpretações, dependendo do  ponto de vista através do qual se compreende o fenômeno. E apresenta, na conclusão que de  há sempre novos limiares a atravessar, pois a vida humana é formada por um permanente ato de  desagregar-se para reconstituir-se novamente.


REFERÊNCIAS

GENNEP, A. V. Os ritos de passagem. 2. ed., Trad. Mariano Ferreira.Petrópolis: Vozes, 2011.

VAN GENNEP, Ketty. Bibliographie des oeuvres d’Arnold van Gennep. Paris: Editions A. et J. Picard,.1964.

ZUMWALT, Rosemary. The Enigma of Arnold van Gennep (1873-1957): Master of French Folklore and Hermit of Bourgla. Reine. M.A. Thesis in Folklore. University of California, Berkeley, 1978

________________: Arnold Van Gennep: o Eremita de Bourgla Reine. (Originalmente publicado em American Anthropologist, 84:299-313, 1982).  www.aaanet.org/committees/.../090vangennep.pdf Acessado em 22 de março de 2015


CITAR ESTE ARTIGO COMO:

NUNES, A. I. C. Antropologia: sobre a obra "Os ritos de passagem", de Arnold Van Gennep. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 21 jul. 2019. Disponível em:  https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/07
/antropologia-sobre-obra-os-ritos-de.html   Acesso em: (data do acesso)


quarta-feira, 10 de julho de 2019

SOBRE A OBRA: "A ANTROPOLOGIA DE RIVERS" (Org. Roberto Cardoso de Oliveira)


                                                     Por Ana Idalina Carvalho Nunes

1. História e etnologia (1920)

O autor inicia seu texto ressaltando o objetivo de destacar a importância da etnologia, no referente ao aspecto de contribuir para o progresso da História, colocando em foco a aproximação dessas duas áreas a partir de 1910, a década que antecede a escrita da obra em questão (1920). No período mais remoto, a antropologia era vista sob o ponto de vista do evolucionismo e o trabalho do antropólogo era, através da análise dos diferentes povos estudados, chegar a uma explicação única, regida pelas mesmas leis. Ou seja, acreditava-se que o processo de formação desses povos fosse o mesmo, independente do espaço geográfico ocupado.  E essa suposição tornava-se mais forte  através das tentativas de mostrar que existiam também razões  psicológicas  que funcionavam  como lei universal na constituição da mente humana.  Dentro desse mesmo pensamento,  supunha-se que depois da “dispersão original da humanidade”, com a  evolução  independente dos vários tipos de homem, que  partes isoladas de terra tenham interrompido sua comunicação umas com as outras, o que promoveu a separação e diferenciação de culturas. Olhando tal situação pelo viés psicológico,  supunha-se que essa separação de povos tenha se dado em razão da uniformidade da mente humana, que  se organizou socialmente, religiosamente e materialmente, respeitando as similaridades  das mentes.  Ou seja, o que a teoria evolucionista defendia era que, em tempos muito remotos, diferentes grupos humanos, partindo de  uma condição de total carência de cultura,  evoluíram em todas as partes do planeta de um mesmo modo. Essa evolução similar se deu, segundo o evolucionismo, pelo caráter de unidade da mente humana, como consequência similar a estímulos externos e internos. De acordo com esse pensamento, a história cultural está fundada em uma unidade psíquica através da qual todos os  grupos humanos de todas as partes seriam dotados do mesmo potencial de desenvolvimento evolucionário, embora existissem alguns com maior nível de evolução que outros, o que poderia acontecer por causa do clima, do solo, enfim, de fatores externos ao próprio homem.
            A grande crítica de Rivers ao evolucionismo referia-se à maneira simples como explicava a expansão da cultura. Segundo ele, “muitos costumes que antes eram considerados como produtos de um simples processo de evolução dentro de um povo isolado, de fato tem atrás deles uma história longa e tortuosa” (p. 241) que o etnólogo tem que desemaranhar.  Ele dá o nome de “escola histórica de etnologia” a essa nova antropologia, ressaltando que, diferente dos alemães, os ingleses não são oponentes da evolução, mas da apresentação como simples de algo que é extremamente complexo.  Em outras palavras, Rivers e os outros antropólogos difusionistas criticavam a  unilinearidade,  não concordavam com a reta constante e ascendente cultural que era apresentada e defendida pelos evolucionistas para explicar a expansão da cultura. Diferente do evolucionismo, o difusionismo via  a cultura como um mosaico de traços adquiridos de outras culturas, com origens e histórias totalmente variadas. Rivers explicava semelhanças e diferenças cultural através da combinação de migrações, adições e mesclas.
            O difusionismo acreditava que as diferenças e semelhanças culturais eram consequência da tendência humana para imitar e a absorver traços culturais, ao contrário do que pensavam os evolucionistas que acreditavam que a humanidade possui uma "unidade psíquica". Origem do conceito de área cultural: teve sua origem nas exigências práticas da investigação etnográfica americana. Foi elaborada como um instrumento para classificar e representar cartograficamente os grupos tribais. 
Rivers apresenta a necessidade de  o etnógrafo desvendar a história de povos que não possuem documentos escritos sobre sua história, cujas tradições orais aparecem tão misturadas com o traço mítico, a ponto de se tornar difícil distinguir o grau de sua historicidade. (p. 242).
            A partir de então ele passa a falar de seu livro, intitulado História da Sociedade Melanésia, onde ele desenvolveu um método de levantamento histórico de costumes e instituições que formavam a cultura social do povo que ele pesquisava. Segundo ele, foi através do estudo da cultura melanésia que ele conseguiu subsidiar sua ideia  estrutura social como organização dual. Segundo Rivers, “Nesta forma de sociedade a comunidade está dividida em duas metades que permanecem numa tal relação uma com a outra que um homem de uma metade é compelido  pelo costume social a casar com uma mulher da outra, as crianças da união pertencendo à metade da mulher” (p. 243). Dada esta estrutura social mais simples, a cultura melanésia foi  assumindo  outros  elementos mais complexos que, estudados historicamente, permitiram a compreensão da cultura melanésia como se apresentava na época em que Rivers desenvolveu seu estudo.
            Entre os recursos utilizados por ele para guiar sua pesquisa na Melanésia, Rivers cita o princípio da distribuição comum, o da conexão orgânica e um terceiro que, na verdade, é apenas extensão do segundo: associação de classe . O primeiro deles é aplicado quando o etnólogo encontra elementos de determinada cultura associados com  um outro elemento, isso em várias localidades investigadas. Quando isso acontece, o fato é usado para fundamentar a atribuição de costumes associados, instituições e objetos materiais a uma cultura. Já no caso oposto, quando não há uma conexão entre os elementos de uma cultura com outro elemento qualquer, pode-se dizer que  esta associação “ existiu em alguma parte e  alcançou pela transmissão seu presente lugar”. (p. 245).          
               Já o princípio da conexão orgânica, é aplicado, segundo Rivers, “quando dois elementos de cultura são encontrados estreitamente associados a outro formando partes constituintes de uma organização”.( p. 246).  Neste caso, acredita-se que eles são pertencentes a uma mesma cultura.  Finalmente, o princípio da associação de classe se refere às situações em que algumas classes sociais ou seções da comunidade são constituídas por representantes ou descendentes de colonizadores de fora.
            De acordo com Rivers, qualquer dos três princípios acima expostos, analisado isoladamente, acaba, fatalmente, sujeito a exceções. Entretanto, quando os três apontam para um mesmo foco, torna possível uma afirmação com alto grau de confiabilidade, de que elementos associados de cultura foram introduzidos ali “por um único e mesmo povo”. (p.247). A partir deste ponto de sua apresentação, Rivers apresenta uma situação hipotética que visa ilustrar a linha de pensamento do método que visa considerar a história na análise da constituição de cultura dos povos, mostrando o quanto, comumente, as hipóteses do etnólogo podem ser confirmadas pela pesquisa histórica. (p. 253)
            É importante, segundo Rivers, observar que o ponto de vista da história que está ligado à etnologia, difere do sentido da disciplina que leva este nome. Em primeiro lugar essa diferença está refletida no “caráter generalizado, impessoal e, em muitos casos abstrato, quando comparado com a concretividade  da história que se baseia em documentos literários”. (p. 255). Outra diferença reside na natureza da sua cronologia, já que a metodologia da análise  etnológica relaciona-se com a cronologia relativa, totalmente diferente da cronologia numérica ou absoluta. No método etnológico, segundo Rivers, a ordem cronológica não se refere a apresentar números exatos, dados exatos matematicamente, mas sim de dizer o que veio antes e o que veio depois, ou, nas palavras de Rivers, o etnólogo  “ficaria satisfeito  se conseguisse atingir conclusões que o habilitassem a dizer que uma influência ou forma de costume ou instituição precedeu ou sucedeu a outra na ordem do tempo”.(p. 256). E, para identificar essa ordem cronológica dos fatos, os vestígios literários são de fundamental importância para identificar, por exemplo, se uma instituição apareceu numa determinada sociedade como influência de outra que existiu mil anos antes ou depois de um certo dado cronológico. De acordo com Rivers, a cronologia marca o caráter de inexatidão que “deve ser sempre uma característica da história”(257-258).

2A unidade da antropologia (1922)

Nesta seção da obra  “A antropologia de Rivers”,  seu organizador, Roberto Cardoso de Oliveira,  apresenta praticamente a íntegra  do texto apresentado por Rivers na conferencia presidencial realizada no Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, em 1922. Rivers apresenta a importância de o pesquisador perceber a relação íntima que existe entre os ramos diversos da antropologia, formando uma unidade. De acordo com ele,

É uma característica das sociedades mais simples da terra que, apesar de ser possível distinguir em suas culturas os diferentes aspectos que rotulamos de sociais, políticos, econômicos, religiosos, estéticos, etc., estes aspectos são tão interdependentes, as funções sociais de diferentes espécies tão estreitamente relacionadas, que é inútil esperar entender qualquer setor da cultura sem um estudo extenso de outros setores, os quais têm ou parecem ter uma sociedade, tal como a nossa, um grau muito maior de independência. Ninguém pode esperar fazer mais do que um trabalho etnográfico de segunda linha numa sociedade simples, se especializar seus interesses e limitar sua atenção a um aspecto qualquer da vida do povo que está estudando. (p. 264).

Ou seja, para estudar um determinado aspecto de um grupo, é preciso compreender esse grupo no seu sentido histórico e amplo, compreender outros aspectos e outros processos, já que entende-se que estão todos interligados. De acordo com Rivers,  a chave da solução de um problema pode aparecer num contexto de perguntas e respostas que aparentemente nada têm a ver com esse problema. Ele frisa  também a questão da unidade da antropologia em conexão com seu sentido histórico e, segundo ele, o que voltou sua atenção para esse foco foi o estudo das sociedades humanas, levando-o a constatar que a unidade é característica necessária da sociedade, qualquer que ela seja, podendo mesmo esta unidade social ser comparada à unidade de todas as partes que compõem o organismo vivo, na promoção da integridade e harmonia desse organismo (p. 265).
Em sua proposta de demonstrar a unidade que existe entre os diversos ramos da antropologia, Rivers  aponta, como a área da antropologia mais intrinsecamente ligada à história, a arqueologia. Tratando-se do estudo de objetos manufaturados, monumentos e inscrições do passado,   arqueologia e história, juntas, podem contribuir grandemente para o conhecimento da história remota da humanidade, frisa ele.  O grande problema que existe é que muitas vezes etnólogos e antropólogos agem como se não houvesse ligação alguma entre o trabalho que um e outro desempenham e, para contribuir para a mudança desta situação, é que a comunicação é apresentada no congresso em que está inserida (p.267-268).
Rivers, num determinado ponto da comunicação, passa a abordar a importância da psicologia nas pesquisas arqueológicas. Segundo ele,

Deve sempre ser lembrado que um aspecto da cultura humana, que talvez seja o mais importante – o psicológico – a evidência fornecida pela arqueologia deve ser sempre deficiente. Monumentos, mesmo quando providos de inscrições, nunca podem dar qualquer evidencia, senão indireta e incompletas, das ideias, crenças e sentimentos do povo pelo qual os monumentos foram construídos ou as inscrições escritas (p. 268).

O que Rivers quer destacar aqui é que a riqueza da pesquisa, quando compreendida em seus múltiplos aspectos, quando entendido que esses aspectos são uma unidade, é que  torna-se possível perceber em monumentos da antiguidade um universo de pesquisa tão rico quanto o arqueológico. Através do estudo psicológico de  civilizações do passado,  por exemplo, torna-se possível compreender as culturas simples de raças selvagens e bárbaras do presente e por meio do estudo psicológico do indivíduo torna-se possível entender reações e caminhos tomados pelos grupos sociais (p. 270-271). 
Numa etapa final de sua comunicação, Rivers aborda  outros dois ramos importantes da antropologia: a filologia e a somatologia, destacando a visão que Malinowski sobre o entrelaçamento do estudo da língua com aspectos diversos da herança social. De acordo com Rivers, o estudo da língua passa a tomar um rumo mais produtivo e importante quando se deixa de dirigir a atenção para a forma e arranjo de palavras entre diferentes povos, para dar maior atenção “à relação com os resultados do estudo da fala por outros métodos e especialmente pelo método da patologia” p. 272). Ele então comenta a história de um oficial que teve um ferimento em seu córtex cerebral e que, em razão disso, perdeu sua capacidade de diferencias as cores. O interessante é que ele conseguia associar objetos que tinham cores iguais, passando a ter um padrão cognitivo semelhante à de alguns grupos mais primitivos. (p. 273). Ele destaca a escassez de estudiosos que se dedicam à somatologia, mesmo diante do fato de a coleta de dados nesse campo da pesquisa serem tão fáceis de conseguir, diferentemente de outras áreas (p. 275).
Ele finaliza, demonstrando sua grande preocupação em oferecer subsídios para que mais jovens fossem atraídos para os estudos antropológicos, frisando  ser este  “um campo que tem necessidade tão urgente de trabalhadores”(p. 277)


Texto analisado: 
RIVERS, W.H.R. (1920) "História e Etnologia", (1922) “A unidade da Antropologia”. In: OLIVEIRA, R.C. de (org.) A Antropologia de Rivers. Campinas, Ed. UNICAMP, 1991,  pp. 239-277.

*Trabalho de Teoria Antropológica apresentado à professora dra. Rogéria Dutra, do PPGCSO/UFJF,  pela mestranda Ana Idalina Carvalho Nunes (2015)

CITAR COMO:

NUNES, A. I. C. Sobre a obra "A antropologia de Rivers". In; Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 10 jul. 2019. Disponível em:https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/07/sobre-obra-antropologia-de-rivers-org.html          Acesso em: (data de acesso) 

quarta-feira, 3 de julho de 2019

A FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE, de acordo com Carl Gustav Jung

Por Ana Idalina Carvalho Nunes

                                                                             
[Resumo da Conferência proferida por Jung, sob o título de “Die Stimme des Innerem” (“A voz do íntimo”) no Kulturbund, Viena, em novembro de 1932. Como tratado Vom Werden der Persönlichkeit” (“Da formação da personalidade”) em “Wirklichkeit der Seele” (“Realidade da alma”), Rascher, Zurique 1934. Novas edições: 1939 e 1947. Nova edição (cartonada): 1969] 

            O tema “formação da personalidade” tem sido foco na área da educação nos tempos atuais mas, na maioria dos casos, é uma proposta que cai no vazio, diante da impossibilidade de se “ensinar personalidade” às crianças, já que os pais e educadores também não têm desenvolvida sua personalidade. A pedagogia desconsidera o fato de que, sendo a personalidade uma “totalidade psíquica, dotada de decisão, resistência e força”, deve-se constatar que é um ideal de pessoa adulta, impossível de existir na infância. É claro que a personalidade existe na criança, mas é uma semente que se desenvolve ao longo da vida e não há sequer uma forma do educador ter certeza da maneira como a personalidade vai aflorar, podendo a criança tanto se transformar em uma pessoa brilhante que promoverá o bem da humanidade, como também se transformar em um monstro. É impossível fazer uma previsão exata, o que  leva à afirmação de que “a personalidade é ao mesmo tempo um carisma e uma maldição”.


Sendo impossível encontrar na idade infantil tais características, supor que a criança possa ser dotada de uma personalidade desenvolvida é como  crer na viabilidade de se transformar a criança numa imitação de adulto, desnatural e precoce. Personalidade é o resultado de uma vida de máxima coragem de entrega, afirmação absoluta do ser individual, é o produto da adaptação a tudo que existe no universo, além de grande liberdade de decidir por si próprio. Será que os pais e educadores atingem esse ideal de personalidade? A grande maioria não, o que infere que também grande parte dos educadores não está preparada para formar a personalidade de crianças. Os métodos pedagógicos tolos que muitos deles aplicam é a prova de que não estão preparados para promover o desenvolvimento da personalidade de crianças.


Quando se fala em educação para a personalidade, o alvo são as crianças de fato, mas deveria se falar na criança que existe no adulto. O homem do século XXI continua perdido em meio à grande coletividade e ainda não superou as consequências da educação massificadora que recebeu. Ele sabe o quão longe está de ter uma personalidade e, sentindo-se incapaz de agir sobre si mesmo, entusiasma-se com a psicologia e educação infantis. O que ele ignora, entretanto, é não conseguirá corrigir nos filhos ou alunos os erros que ele mesmo comete. E por conta dessa tentativa frustrada de oferecer aos filhos a educação que gostariam de ter recebido, muitas vezes os pais pecam, tornando-se permissivos e negando aos filhos os limites saudáveis na educação; uma evidência dessa falha cometida pelos pais é a reclamação recorrente de terem sido educados com severidade excessiva. 

Acreditando terem superado as impressões ruins causadas por uma educação errada, eles erram utilizando um extremo oposto dessa educação, desconsiderando o quão perigosos são os extremos. O que podemos ver mais comumente são pais se sacrificando para oferecer aos filhos aquilo que eles queriam para si mesmos, desconsiderando o que os filhos querem para eles próprios. Os pais acreditam saber o que é melhor para os filhos, mas esse melhor é contextualizado nos sonhos que os pais tinham para si mesmos.

Assim, como pode um adulto educar para a personalidade, se ele próprio não tem personalidade? Levando em conta este questionamento é que defendemos a tese de que a educação para a personalidade deve começar pelos educadores. 

O desenvolvimento da personalidade na pessoa adulta

Em primeiro lugar, vale ressaltar que a personalidade não pode ser desenvolvida através de um convite ou mesmo porque se recebeu uma ordem. Se não houver uma grande necessidade, se não for obrigada a desenvolver-se, nada acontece, mesmo porque é muito mais cômodo seguir regras e viver confortavelmente do que despertar para a necessidade de mudar a própria direção e tomar um novo caminho. Necessidade, escolha do caminho e designação – eis os três passos para se ouvir a voz interior, para despertar a personalidade e deixar nascer um líder, um herói, uma pessoa iluminada (ou até mesmo uma personalidade cruel e destruidora). Apenas quando se passa por uma grande dificuldade é que se pensa em escolher um novo caminho. E para a escolha desse caminho é imprescindível ouvir a voz interior, que dita as leis que se deve obedecer.

Se a pessoa tiver alguma dúvida sobre suas escolhas, se não tiver certeza de que o caminho escolhido por ela é realmente o melhor, ela pode acabar se perdendo em outros caminhos marcados pelas convenções (sociais, morais, religiosas, políticas, filosóficas etc.) e, ao invés de seguir o caminho que sua própria lei ditou, pode escolher seguir as convenções, o caminho coletivo que outros escolheram por ela, passando a adotar um método coletivo, o que causa enorme prejuízo à sua personalidade. 

E não se pode acusar de covarde a grande maioria que abre mão do grande presente que é o desenvolvimento da própria personalidade, para seguir um caminho mais fácil. O desenvolvimento da personalidade é atemorizante por conta de suas consequências, a começar pelo isolamento. Quando uma pessoa se destaca da grande massa e começa a pensar por si próprio, a agir pela própria lei, é considerada louca, não consegue se fazer entender pelos outros, é ignorada. Isso porque a grande maioria tem seus pensamentos sufocados por uma barreira fortíssima de preconceitos, o que os impede de enxergar a vida e avaliá-la por si mesmos. Os que ficam presos à coletividade não conseguem compreender como alguém pode escolher um caminho estreito e íngreme sem a certeza de onde poderá chegar, quando é possível caminhar por uma estrada larga e livre de imprevistos, na qual se pode ver claramente o destino. O homem massificado não precisa pensar: ele adere ao pensamento coletivo. E rejeita tudo o que pode tirá-lo da estagnação em que se encontra, encontra respostas que expliquem todas as suas poucas dúvidas, mascarando a personalidade incômoda – tentando matar o demônio que insiste em mostrar o que ele, definitivamente, não quer ver. Quem se perde em meio à coletividade imagina viver confortavelmente, mas perde o sentido da própria vida, vivendo o sentido grupal. 

“O desenvolvimento da personalidade é um bem tão precioso, que se deve pagar um alto preço por ele”, diz Jung em sua Conferência. Os grandes nomes da história viveram livres das convenções, livraram-se delas, escolhendo ouvir a própria voz interior, desapegando-se de tudo o que é coletivo: dos medos, convicções, leis e métodos. Podemos chamá-los de “iluminados”, os que nunca foram esquecidos, os “heróis lendários da humanidade, os admirados, os queridos, os adorados, os verdadeiros filhos de Deus, cujos nomes não desaparecem nos períodos infindáveis do tempo”. Cada uma dessas personalidades tem relato de um momento que foi crucial em suas vidas, em que foram movidos por uma voz, um chamado interior que os levou a escolher um caminho e a segui-lo fielmente, sem ceder ao cansaço ou ao desânimo. A essa voz interior, a sociedade costuma chamar demônio ou deus interior, que ordena a pessoa a fazer tal ou qual coisa. O homem que tem designação obedece à sua própria lei, como se um demônio lhe insuflasse caminhos novos e estranhos. Quem tem designação escuta a voz do seu íntimo, está designado.

A personalidade age na pessoa da mesma maneira como um grande líder atua na sociedade: salvando, modificando e curando. É como se a pessoa não designada fosse um rio perdido em seus braços secundários e pantanosos, ou então como se fosse uma semente germinando embaixo de uma pedra. A designação, ou iluminação, em suma, o desabrochar da personalidade,  age sobre a pessoa,  levando-a a se descobrir. Traçando uma analogia entre uma pessoa e um rio, podemos dizer que a pessoa iluminada é como um rio que, repentinamente, descobre seu verdadeiro leito e muda o seu rumo. Ouvir a voz interior é abrir-se para uma vida plena, para uma consciência ampla e abrangente. 

O desabrochar da personalidade corresponde a um aumento de consciência, a uma “iluminação”. A voz interior apresenta aquilo que é visto como “o mal” para as pessoas comuns (a personalidade). Se a pessoa não cede e não assume esse mal, nada desse mal penetra nela. Em contrapartida, morre qualquer possibilidade de mudança, renovação ou cura dos problemas de que padece a sociedade da qual faz parte. Se a pessoa cede apenas em parte, ela não muda radicalmente, não promove uma grande tempestade, mas ainda assim a situação é produtiva, já que ela consegue enxergar claramente o que acontece e, a partir daí, tem a possibilidade de adaptar o seu cotidiano às leis próprias e desvincular-se parcialmente da massa. No entanto, se a pessoa se atemoriza e foge do mal, ela se perde em meio à multidão, perdendo sua identidade e assumindo a personalidade coletiva, passando a agir conforme os grupos, a sentir o que sente a grande massa. Mas não se pode condenar a grande maioria das pessoas por agirem de tal forma, já que o que é melhor pode mesmo parecer um mal, quando as pessoas já possuem o que é bom. E para que algo melhor aconteça, uma coisa boa tem que ter fim para abrir espaço a outra coisa que, de início,  dará a impressão de ser algo muito mau. Mas o fato de o melhor parecer mau inicialmente, não quer dizer que o mal não possa se intrometer nessas questões, sob a alegação de ser o melhor – o que torna esse terreno cheio de armadilhas escondidas, escorregadio e perigoso, como a própria vida é.


A personalidade, enfim, o que é?

Partir para a conquista da personalidade, jogar-se nesta aventura em que o prêmio é a plenitude, a iluminação, é, sem dúvida alguma, o maior dos riscos. O demônio da voz interior é, a um mesmo tempo, o perigo máximo e o auxílio indispensável. Por sabermos tudo isso, não podemos condenar aqueles que se negam a pensar por si mesmos, a seguir a própria lei, a obedecer obstinadamente à sua voz interior, tornando-se os grandes líderes, heróis, seres iluminados de que a humanidade tanto precisa. Tampouco devemos criticar os pais e educadores que, temerosos do desconhecido que reside por trás da personalidade de cada um, tentam proteger seu rebanho, recomendando que escolham caminhos mais fáceis, que evitem os abismos, que não contrariem as leis e regras sociais, enfim, educadores e pais que preferem ver suas crianças crescerem presas às convenções do que correrem o risco de serem plenas e pensarem por si próprias. Talvez,  formar a personalidade  seja, depois da urgência de desenvolver um trabalho árduo com pais e educadores, aprender e ensinar a aceitar as diferenças, desmontar o estereótipo de “mal” que paira sobre o desconhecido. Talvez seja preciso aprender a deixar que a curiosidade natural da criança não seja limitada com frases do tipo: “Você vai cair”, “Você vai se machucar”, “É perigoso”, “Você não vai conseguir”. Precisamos aprender com a criança a sermos mais ousados e destemidos diante do novo.

Recomendando que as crianças encontrem um caminho que se desvie de abismos,  os pais e  educadores não poderão impedir que seus educandos se coloquem à frente da grande multidão e que partam para a busca de um caminho mais alto e seguro, segundo sua própria lei; fazendo isso, o jovem estará ouvindo sua voz interior e permitindo que ela comande a sua ação.  Nesse caso, ainda que coloquem uma pedra em cima da semente que germina, ela segue sua missão e encontra um caminho para a luz. E o caminho que precisa ser descoberto é como algo psiquicamente vivo, que a filosofia clássica chinesa denomina TAO. “É comparado a um curso de água que se movimenta inexoravelmente para a meta final”. “Estar dentro do TAO significa perfeição, totalidade, desígnio cumprido, começo e fim”. 
PERSONALIDADE É TAO.


CITAR COMO:
NUNES, A. I. C. Sobre a formação da personalidade, de acordo com Carl Gustav Jung. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 03 jul. 2019. Disponível em:  https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019 /07/a-formacao-da-personalidade-de-acordo.html   Acesso em: (data do acesso).

QUESTÕES IMPORTANTES SOBRE A OBRA DE DOSTOIÉVSKI


Por Ana Idalina Carvalho Nunes

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1. O QUE É A ARTE PARA DOSTOIÉVSKI?

É uma interpretação do real, ao ponto que a realidade se torna fantasia e a fantasia uma realidade mais alta: por um lado a realidade, vista em seus traços mais reais e visíveis, torna-se transparente a uma realidade mais profunda e intensa, porque de natureza espiritual; por outro, a verdadeira realidade é apenas a realidade escondida e espiritual que não tem outro modo de se manifestar senão através da realidade visível e quotidiana. Dostoiévski entende sua arte como um “realismo superior”.


2. COMO SÃO AS PERSONAGENS DE DOSTOIÉVSKI?

Estão situados em um ambiente e na sociedade; elas têm posição social e possuem ou possuíram uma profissão. Contudo, os particulares da situação, da paisagem, das vestes… são raramente descritos; e as personagens não são reconhecidas por sua profissão. Kirilov é engenheiro de pontes, mas o leitor o reconhece como ateu místico e defensor do suicídio; Chatov é contador, mas é reconhecido como teórico do nacionalismo místico e messiânico. Na verdade, tudo aquilo que é visível e visto se transforma em fantasia; a fantasia, por sua vez, se transforma na figura de uma realidade superior; e a visão desta realidade superior é tão evidente que suprime a atenção aos particulares mais imediatamente visíveis, de maneira tal que nos levam a esquecer o visível imediato. Da mesma maneira, os empregados não são empregados, as prostitutas não são prostitutas mas algo diferente e superior; e é apenas este “algo mais” que conta realmente no mundo de Dostoiévski. as personagens de Dostoiévski mesmo que "fisicamente vestidos, socialmente colocados, ambientados em um espaço e em um tempo, vivem em uma realidade superior e em uma nudez espiritual. Elas nunca  fazem propriamente algo: não estão ocupados, não estão trabalhando; vão e vêm sem cessar, falam bastante e sobretudo vivem experiências importantes e decisivas. O que fazem estes homens e mulheres que não fazem nada, mas vivem intensamente e falam da experiência que vivem? Berdiaeff responde: meditam sobre a tragédia do homem, enfrentam o enigma do mundo.


3. COMO É O ESPAÇO EM DOSTOIÉVSKI?

A primeira coisa evidente é a falta da natureza, descrita com tanto amor na grande literatura russa. Suas paisagens são lugares referidos ao homem, são espaços interiores e espiritualizados, intimidades densas da presença humana, caixas de ressonância de dramas interiores e de secretas tragédias. Dostoiévski não é insensível à terra russa, mas esta não é um lugar geográfico nem uma paisagem natural: trata-se de um solo carregado de memórias humanas e uma substância mística densa de espiritualidade. Ele não deixa de descrever as cidades, de maneira particular Petersburgo, mas prefere os espaços exíguos e cheios de gente onde suas personagens vivem, se movem, conversam, misturam seus destinos e conjugam seus dramas. Os espaços, na verdade, são íntimos, espirituais, humanos, e símbolos daquilo que angustia suas personagens; e a razão pela qual as descrições dos espaços deixam tudo na névoa, na incerteza e no esquecimento é que o mundo físico é realmente real e visível apenas quando uma alma humana o torna lugar de seu sofrimento e de seu desespero.

4. COMO É O TEMPO EM DOSTOIÉVSKI?

O tempo, por sua vez, é sempre apressado. Em Dostoiévski tudo se desenvolve em um ritmo expressa e intencionalmente acelerado, de um modo muito mais rápido que o tempo normal de nossos relógios. Nele cada dia é uma época inteira, cada hora é uma penca de eventos, cada minuto é pleno de destino. Assim, Crime e castigo começa dois dias e meio antes de Raskólnikov cometer o assassinato, e continua durante um tempo estimado de mais ou menos duas semanas; os acontecimentos de O idiota se dão em apenas nove dias; toda a complicada ação de Os demônios acontece em um mês; os terríveis eventos de Os irmãos Karámazov requerem apenas sete dias. Espaço e tempo são bem diferentes de espaço e tempo reais e físicos: são espaços e tempos espiritualizados, lugares de dor e tragédia, minutos decisivos para todo um destino.

5. A ANTROPOLOGIA EM DOSTOIÉVSKI

A antropologia de Dostoiévski mostra-se imediatamente na própria configuração de suas personagens e em suas relações. Seus romances não são romances em sentido estrito: são tragédias em forma de romances. Os pensamentos de seus heróis não são opiniões, mas irradiações de idéias vivas; os seus sentimentos não são emoções pessoais, mas paixões que constroem e destroem um mundo; os seus encontros não são eventos, mas confluências ou divergência de mundos a fins ou opostos; suas vidas não são biografias mas destinos. As personagens de Dostoiévski são idéias em movimento, ideias vivas, ideias personificadas. Os heróis de Dostoiévski são “ideias personificadas”, isto é, não temporais e transitórios como indivíduos, nem abstratos e intemporais como conceitos, mas figuras onde se unem de forma indissolúvel tempo e eternidade: a eternidade vista na sua concreta presença no visível, e o tempo compreendido em sua constitutiva relação com a eternidade. Os acontecimentos envolvendo as personagens de Dostoiévski devem ser vistos sobre um pano de fundo eterno: o verdadeiro acesso aos seus romances se obtém quando se projeta a narração sobre este pano de fundo de eternidade que lhe constitui como que uma meta-história.

6. OS DEMÔNIOS (personagens)

Stavróguin é uma figura tenebrosa: enigmático mas iluminante, ele é um homem morto interiormente, mas que consegue dar vida aos outros. Ele é o astro em torno de quem gravita a ação: tudo parte dele e a ele retorna. Da plenitude de sua criatividade colocada sob o sinal da destruição saem sempre novas ideias, que aos poucos envolvem seus amigos, mas que culminam sempre em naufrágio, sem que ele sinta o menor remorso ou a menor responsabilidade. O tema do romance é a decifração do enigma Stavróguin. A rebelião de Stavróguin é mais profunda e radical que culmina na indiferença e no nada.  Stavróguin, por sua vez, não tem um escopo preciso, porque já superou toda lei e desta forma não consegue mais distinguir entre o bem e o mal: para ele bem e mal são a mesma coisa. Ele ignora completamente toda norma, todo limite, todo valor: a sua liberdade é puro arbítrio, e, não tendo diante de si nenhuma norma a violar, não tem também nenhum escopo a alcançar, e se dissolve na indiferença, no tédio e na experimentação. Stavróguin é uma natureza superior: foi uma criança doce e sensível; desenvolveu em si uma força de vontade invencível e um domínio de si seguro, ao ponto que seu caráter aparece como uma potência tranquila e misteriosa, calma e imperturbável, fria e inacessível; a sua beleza e a sua força encantam homens e mulheres, e cada um deriva de seu fascínio uma razão diferente, e de sua mente fértil uma ideia para viver e se alimentar. Mas ao lado desta inteligência, ele tem um coração vazio, deserto, sem vida. A sua calma é fria determinação, o seu domínio de si é desinteresse do puro expectador, o seu vigor é insensibilidade rígida, a sua força é demoníaca.

Ele se encontra além do bem e do mal porque sua liberdade arbitrária e ilimitada ignora toda distinção entre bem e mal. Desta incapacidade de distinguir entre bem e mal deriva a indiferença e a equivalência entre os dois termos: para Stavróguin é indiferente fazer o bem ou o mal, e o critério pelo qual ele realiza um ou outro é completamente indiferente à sua distinção. “Posso desejar fazer uma ação boa e sinto prazer em fazê-la; de igual modo desejo também uma ação má e sinto igualmente prazer”. E é exatamente deste absoluto amoralismo que Chatov o acusa. Kirílov com seu ateísmo trágico, Chátov com seu nacionalismo religioso exacerbado e Piotr com sua vontade de poder niilista são experimentações de Stavróguin, que de fato não adere intimamente a nenhuma destas idéias. E da mesma maneira a inocente menina, que ele violenta e leva ao suicídio e a demente Maria, com quem ele se casa por sádica curiosidade e perversa vontade de degradação. Mas no cinismo destas experimentações ditadas pelo tédio, inspiradas pela indiferença, congeladas pela insensibilidade, se aninha um elemento de falsidade, de mentira, de impostura que não escapa ao olhar sincero de Maria, que atravessa a máscara de Stavróguin e vê não um príncipe bom, mas seu sósia mau e cruel. A falsidade fundamental consiste em agir apenas como expectador de si mesmo: intimamente dividido, ator e expectador ao mesmo tempo, ele vê e estuda seu sósia enquanto comete os atos mais ignóbeis, e assim se ilude em não tomar parte; mas o seu sósia é sua maldade personificada e objetivada, o demoníaco que está nele. Este elemento de falsidade e mentira se insinua até mesmo no momento em que Stavróguin procura o bispo Tíkhon para confessar-se. Mas Tíkhon percebe imediatamente: nele o remorso e o arrependimento não se distinguem bem do prazer pela própria degradação. O pretenso arrependimento de Stavróguin não passa de uma mistura de auto-tortura e prazer, humilhação e orgulho. Ou seja, nada menos cristão e mais falso do que esta humildade inchada de soberba, esta auto-acusação cheia de vaidade, esta confissão que nada mais é que exaltação de si. Privadas de limites e de normas, a liberdade e a vontade de Stavróguin são uma grande força abandonada a si mesma, pois a pura e simples experimentação não constitui seu emprego suficiente e adequado: trata-se de um enorme desperdício e uma dispendiosa dissipação. 

Neste homem interiormente sem vida, profundamente inanimado, pobre como um pedaço de gelo, a força originária não se demonstra, não atesta a própria existência, não se atualiza em realizações positivas: ao contrário, tende a disperder-se e a exaurir-se: leva à dissolução, à desagregação, à morte. “Pode-se discutir eternamente sobre tudo, mas só consegui extravasar uma negação desprovida de qualquer magnanimidade e de qualquer força”. A sua disponibilidade é puramente negativa, o seu desempenho é morte interior, a sua inatividade é desagregação, a sua força é destruição. Não é por acaso que Stavróguin tem como alucinação a visão do demônio: o caráter demoníaco de sua vontade e a natureza satânica de sua perversão consistem neste espírito de negação e dissolução. A sua força, tão intimamente negativa, torna-se destruição dos outros e de si. Destruição dos outros, pois todo contato com ele é destrutivo: os homens que sofreram sua influência não são alimentados mas destruídos. Destruição de si, pois apenas o suicídio pode imprimir o selo do nada em uma vida vivida sob o signo do nada. O itinerário de Stavróguin culmina na destruição dos outros e de si. Este destino está implícito no caráter demoníaco de sua força; mas também é conteúdo de Stepan Trofímovith e seu filho Piotr. Ou seja, entre o idealismo inoperante dos utopistas (Stepan) e a anarquia sanguinária dos niilistas (Piotr) há uma filiação ideológica direta. A vontade de destruição do filho descende

7. O ADOLESCENTE (personagens)

Versilov - várias personagens têm como escopo descobrir o segredo de Versilov: elas têm esta ocupação como a ocupação mais séria de todas, pois se trata de descobrir o próprio enigma do destino humano.

8. CRIME E CASTIGO (personagens)

Raskólnikov  - A obra Crime e Castigo trata  do destino do homem, de maneira particular do homem soberbo centrado apenas em si mesmo: trata-se da história de Raskólnikov, que pretende se tornar um super-homem mas acaba  tornando-se um sub-homem. Assistimos então a dissolução de uma personalidade vigorosa que abusou de sua própria força: como pode o vazio de uma alma produzir um ser e mover o mundo? Como pode um niilista buscar melhorar o mundo? Raskolnikov vive de uma ideia à luz da qual parece logicamente permitido o homicídio de uma velha usurária inútil e danosa para ajudar os pobres explorados, humilhados e ofendidos. É singular o destino desta ideia: para o bem dos pobres chega-se à eliminação de uma vida humana. Existe um modo de querer e de fazer o bem que se inverte paradoxalmente em um querer a destruição e em um fazer o mal. Raskólnikov não é em si uma personagem má: é generoso, sofre e não suporta as injustiças do mundo dos homens; ama com ternura a mãe e a irmã; deseja ajudar os pobres, infelizes e sofredores; salvou crianças de um incêndio, ajudou um companheiro necessitado, privou-se de seu último dinheiro para ajudar a pobre família de Marmeladov; suscita a amizade e a admiração de Razumikin; vive cheio de sentimentos nobres, delicados e até mesmo religiosos; crê em Deus, em Cristo e na ressurreição de Lázaro; liga-se amorosamente a uma mulher que, por desgraça, se encontra marginalizada na sociedade, Sônia. Mas Raskólnikov não suporta a condição humana: ele então escolhe voluntariamente o homicídio para demonstrar a si mesmo a própria liberdade ilimitada; transgride deliberadamente a lei religiosa e moral para demonstrar a si mesmo de estar além do bem e do mal; decide deliberadamente assassinar um ser socialmente daninho para demonstrar a si mesmo de pertencer ao seleto número dos seres excepcionais para os quais tudo é permitido. Ele sustenta que os homens excepcionais, superiores, “napoleões”, são ao mesmo tempo benfeitores da humanidade e criminosos: cometem delitos, derramam sangue e transgridem leis humanas e divinas, mas fazem bem à humanidade. Disso deriva que, enquanto a massa tem o dever de observar a lei moral e obedecer os governantes, os seres excepcionais, por sua vez, não estão submetidos a lei alguma, e podem fazer tudo aquilo que querem, pois sua superioridade os eleva acima da maior parte dos homens. Pois bem, Raskólnikov quer ser um destes homens, e depois de meticulosa preparação assassina a velha usurária. Para demonstrar a si mesmo que é um super-homem, além do bem e do mal, realiza um “ato gratuito” contra a lei moral e social. Eis o pecado de Raskólnikov: o orgulho e a soberba; a infração da lei e a afirmação de si; a transgressão da norma e a pretensão de uma liberdade ilimitada. A rebelião e o titanismo. Mas o ato gratuito revela-se um completo fracasso. Raskólnikov se dá conta que soube apenas matar, mas não ultrapassou: matou a velha usurária, mas não superou a lei; cometeu um assassinato mas não se colocou acima da norma moral. Na verdade ele não matou a velha mas a si mesmo: o ato de liberdade absoluta, ilimitada, arbitrária, com o qual pretendia afirmar a si mesmo, isto é, o próprio direito a liberdade arbitrária, ilimitada e absoluta, negou inteiramente este direito. O assassinato da velha foi inútil, porque demonstrou que o homicida não é um Napoleão mas um piolho, e que a liberdade arbitrária e ilimitada nega a si mesma.

9. O IDIOTA (personagens)

Príncipe Míchkin - incompreensível aos homens tenebrosos, mas claro às almas puras e às crianças, é aquele que a todos compreende e que revela cada um a si mesmo: ele sabe resolver o enigma de cada um, esta é a tarefa que ele se deu. Em torno dele gravitam obscuras paixões: todos sentem-se atraídos por sua inocência, mas quase ninguém compreende que ele é e o que fará.

10. OS IRMÃOS KARAMÁZOV (personagens) 

A luz angélica e a obscuridade demoníaca lutam entre si, nos modos mais diversos; no interior do ânimo dos quatro irmãos, sem caracterizar de maneira exclusiva nenhum deles. De maneira bufonaria e cinicamente, o velho Karamázov afirma: “Menti, menti realmente durante toda a minha vida, menti todos os dias e todas as horas. Na verdade, sou a própria mentira, sou o pai da mentira.

Aliocha – angélico, possui as tendências Karamázov e luta continuamente contra as más tentações às quais, contra sua vontade, está exposto.

Smerdiakov - homem  tenebroso, Smerdiakov é  o assassino do velho pai, tem momentos de contemplação e de meditação sobre o mistério do mundo. Smerdiakov, sem experimentar nenhum remorso, matou o pai e depois, sem experimentar nenhuma exitação, suicidou-se: sua fúria destrutiva em primeiro lugar voltou-se contra os outros e depois contra si mesmo; sua atividade constituiu-se em negação que terminou por negar-se. Além da destruição dos outros e de si, a liberdade que pretende afirmar a si mesma, além da lei moral, acaba transformando-se em gosto pela infração, em prazer na transgressão. Trata-se da perversão, onde o mal é praticado não apenas por deliberada vontade de infringir a lei, mas também pelo prazer desta consciente e voluntária transgressão: fazer o mal por fazer o mal, ofender pelo gosto de ofender, ser feliz por cometer delitos.

Ivan - crê em Deus, mas nega a criação, tem em sonho a visão do demônio, e inverte a religião em ateísmo e em loucura;

Dmitri - é pecador, mas crê em Deus e no bem, e transforma o pecado em dor e salvação ao expiar uma culpa não cometida.

11. MEMÓRIAS DO SUBSOLO

Nas Memórias do subsolo, Dostoiévski busca investigar a liberdade e a personalidade do homem: à harmonia cósmica, que pretende absorver a humanidade na necessária legalidade do universo, o homem opõe o seu direito de combater arbitrariamente as verdades vinculantes da matemática; e à pretensa racionalidade da vida, que pretende ser guia infalível da conduta humana, o homem opõe a independência de seu querer, que pode ser arbitrário ao ponto de desejar deliberadamente a infelicidade. Mas ele busca também, com a investigação sobre o homem do subsolo, sublinhar a realidade do mal, enquanto ressalta aquilo que no homem não pode ser reduzido a uma espiritualidade piegas e otimista: a maldade de seus instintos e de seus desejos. É impossível afirmar que a legalidade do universo e a universalidade da razão guiam a conduta humana para o bem: à harmonia do universo o homem pode preferir a destruição, e à pretensa coincidência de interesse e virtude o homem opõe sua deliberada vontade de fazer o mal; de tal maneira que, contra todas as lendas otimistas da razão e do progresso, não se pode contestar a presença do demoníaco na vida do homem. Se o universo fosse harmonia, racionalidade, beleza e bondade, o mesmo não se poderia dizer do homem e de seu mundo, onde se aninha e reina o mal: para o homem não basta o instinto de autopreservação. O homem não está garantido na positividade de sua conduta por uma racional e predisposta coincidência de interesse e virtude: O homem não faz o mal porque ignora o próprio interesse, e caso conhecesse verdadeiramente sua própria vantagem não cometeria ações más. o homem não faz o mal por ignorância, pois também pode sentir puro gosto em fazer o mal: no homem do subsolo o conhecimento do bem e a ação má podem dar-se simultaneamente; o fato de conhecer o ideal não apenas não torna impossível o mal, como também instiga e tenta ao mal.


12. AS IDEIAS EM DOSTOIÉVSKI

Os romances de Dostoiévski são colocações de problemas e contrastes de ideias: seus heróis são verdadeiras e próprias “ideias personificadas”. A palavra “ideia” é uma das mais usadas por Dostoiévski, tanto em seus romances quanto no Diário de um escritor. Na verdade, todas suas personagens vivem de ideias, aderem a ideias, decifram ideias, combatem ideias: Ivan Karamázov “tem uma ideia” e Aliocha quer penetrar “o segredo desta ideia”; Versilov é “o inventor de uma sua ideia própria”; Kirílov se suicida porque “não suportou sua ideia”; Chatov tem “a sua ideia e vive para ela”. Dostoiévski se preocupa em entender a “ideia da Europa”, e deseja aprofundar a “ideia da Rússia”. Contudo, não encontramos em Dostoiévski uma definição daquilo que ele entende por ideia; assim, para tentar colher o significado de seu termo “ideia” temos buscar interpretar as imagens que ele utiliza para determiná-lo e configurá-lo.

12. O QUE É IDEIA PARA DOSTOIÉVSKI?

A primeira imagem que Dostoiévski utiliza para determinar a ideia é “semente divina”. uma força viva que produz e anima o mundo: “as ideias descem às almas dos homens e se propagam por contágio”. A capacidade de uma ideia de se difundir é imensa: “as ideias são contagiosas e difundem-se segundo leis que não podemos conceber totalmente”. O poder de uma ideia é totalmente independente do grau de cultura da pessoa que a ela adere: “às vezes uma ideia, que parece acessível apenas a uma inteligência culta e elevada, consegue repentinamente impressionar uma pessoa tosca, inculta e indiferente”. Os grandes moventes da história são ideias que, às vezes, podem ter um início imperceptível, incerto, invisível: Deus não necessita de grandes homens para difundir suas sementes; ele pode propagá-las até através da mediocridade, elevando-a a alturas inimagináveis:

A segunda imagem que Dostoiévski utiliza para o conceito de ideia é “segredo”: a ideia na qual um homem crê e da qual vive é chamada de “seu segredo”.  Mas a palavra “ideia” tem também um significado negativo: Raskolnikov vive de uma ideia à luz da qual parece logicamente permitido o homicídio de uma velha usurária inútil e danosa para ajudar os pobres explorados, humilhados e ofendidos. O bem apenas como utilidade (Raskolnikov); a liberdade que não pode se conciliar com a felicidade (O grande inquisidor); que uma velha inútil seja apenas um piolho a ser esmagado (Raskolnikov); que os homens são ratos (Versilov); os planos sociais dos demônios (Chigalióv); o super-homem suicida de Kirílov; o primado absoluto do povo russo segundo Chatov… são algumas idéias deformadas e deturpadas que geram apenas destruição e morte.

Assim, para Dostoiévski o termo “ideia” tem dois significados, claramente opostos entre si: no primeiro a ideia é semente celeste, realidade transcendente presente no coração do homem; e no segundo, é mais sugestão demoníaca que inspiração divina, é produto do homem errante e decaído, é deformação e traição da verdade.

13. DIFERENÇA ENTRE IDEIAS DIVINAS (IDEIAS) E IDEIAS DEMONÍACAS (IDEOLOGIAS)

Refere-se a duas formas do exercício da liberdade: pela primeira a verdade entra no mundo humano através da liberdade, conforme o Evangelho de João que afirma “a verdade vos fará livres”; pela segunda, ao invés, a liberdade, segundo a narração do pecado original, é a vontade de gozar do fruto proibido para tornar-se igual a Deus. De um lado, a liberdade é obediência: obediência ao ser, serviço humilde à verdade; homenagem à realidade e à verdade pré-existente; de outro, ela é rebelião: rebelião a Deus, luta contra o eterno, traição da verdade.

14. TEMAS CENTRAIS DA OBRA DE DOSTOIÉVSKI

Toda a obra de Dostoiévski gira em torno destes sentidos opostos de liberdade: a liberdade como obediência e a liberdade como rebelião, entre a obediência a Deus e o serviço ao diabo, entre o bem e o mal, entre a origem a ser recuperada e a queda a ser redimida, entre a positividade esperada escatologicamente e a negatividade experimentada temporalmente.

Uma experiência fundamental e decisiva em Dostoiévski é a constatação da realidade do mal: o mal e a dor, o pecado e o sofrimento, a culpa e a pena têm realidade efetiva e inelutável. Para ele, não se pode pensar que o mundo do homem esteja ordenado por uma harmonia e dominado pela razão, e desta forma determinado pelo bem e destinado ao progresso. Com isso, ele se coloca contra o fácil otimismo idealista e positivista do século XIX

15. O MAL PARA DOSTOIÉVSKI

Para Dostoiévski o mal não é apenas a fraqueza e a fragilidade do homem, mas a inclinação a ceder às tentações, aos instintos irresistíveis, aos desejos prepotentes. A realidade do mal é algo muito potente, porque é fruto de uma força vigorosa e robusta: de um lado é a presença eficaz do demoníaco e de outro a resoluta vontade do arbitrário. O mundo humano é dominado por uma positiva vontade de mal: o mal, o pecado, a culpa não são incapacidades humanas de persistir e perseverar no bem, mas são a instauração positiva de uma realidade negativa; são o fruto de uma vontade diabólica inteligente e consciente de si mesma; são a decisão de uma liberdade ilimitada desejosa de afirmação além de toda lei e de toda norma. O mal é produto da vontade e da liberdade do homem, que consciente e deliberadamente comete a ação má, e até mesmo sente prazer com todas as nuances que Dostoiévski trata em seus  grandes romances.

O mal pode ser, em primeiro lugar, resultado da tendência, muito frequente no homem, de transgredir a norma, seja ela lei moral, costume tradicional ou convenção social. Neste sentido, o mal assume o aspecto de uma consciente infração e de uma deliberada transgressão, que implica a afirmação da própria liberdade ilimitada e arbitrária contra o limite de uma norma. Trata-se da rebelião a uma ordem moral e a uma lei religiosa, rebelião que pode tomar o aspecto de uma titânica exaltação de si além de toda norma, além do bem e do mal.

O texto acima é a reprodução de uma prova aplicada pelo professor dr. Paulo Afonso de Araújo, disciplina de Filosofia da Religião II, graduação em Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora (2011). Os textos de referência para consulta da prova acima são resenhas produzidas pelo próprio professor e que eram estudadas durante as aulas. Algumas das minhas lembranças mais claras e agradáveis mostram a imagem daquele homem elegante, cabelos brancos e longos,  de postura austera e uma voz  firme e grave, mas também macia e ondulada, lendo e comentando os textos. Algumas vezes, a leitura me fazia penetrar tão profundamente nos ambientes de Dostoiévski que eu precisava sair e tomar água, tomar ar, para conseguir respirar. As aulas do professor Paulo Afonso me fizeram não apenas conhecer, mas  ser uma amante da obra desse grandioso filósofo. 

CITAR COMO

NUNES, A. I. C. Questões importantes sobre a obra de Dostoiévski: com base em textos do prof. Dr. Paulo Afonso Araújo (UFJF). Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 03 jul. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/07/questoes-importantes-sobre-obra-de.html Acesso em: (data de acesso)

ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido.  Fonte:    http://www. intermedi a. uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep        ...