domingo, 29 de maio de 2011



O QUE FAZ UM PROFESSOR DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO?
Paulo Ghiraldelli Jr


Está arraigada na mentalidade dos professores a tese de que “na prática a teoria é outra”. Muitas vezes dizemos para os professores que eles estão errados ao pensarem isso. Mas, se refletirmos melhor, talvez seja certo concordar com eles, ao menos em parte.

O que está errado é dizer “na prática a teoria não funciona”. Mas, ao dizer “na prática a teoria é outra”, podemos sim estar dizendo alguma verdade. Ou seja, na prática há uma teoria, ainda que não seja, rigorosamente, a teoria proclamada. Marx dizia que o pior arquiteto ainda é melhor que a mais habilidosa aranha. Melhor e pior, para ele, era em função da teoria presente na consciência. Para ele, a aranha não tinha nenhuma teoria, não podendo variar sua teia a partir de um projeto mentalmente predeterminado, enquanto que um arquiteto, ainda que completamente inapto, mesmo assim faria suas construções a partir de um projeto adrede preparado mentalmente. A existência da elaboração de um projeto, de alguma teorização para agir, era o que fazia Marx elogiar o homem em detrimento da aranha. Talvez tenhamos que observar essa postura de Marx para entender a frase “na prática a teoria é outra”. Ou seja, na prática, a teoria proclamada por não estar vingando, mas que há alguma teoria vingando, não podemos ter dúvida. Uma prática humana, ou seja, uma ação pragmática ou uma práxis, envolve algum projeto, alguma teoria.

O problema, então, quando observamos a prática, é distinguir qual teoria é que está efetivamente sendo aplicada. A teoria proclamada é que dirige a ação ou há uma teoria não proclamada, não muito clara para os executores, conduzindo os feitos destes?

Em termos de pedagogia, essa segunda alternativa não é estranha. Os professores desenvolvem uma ação pedagógica segundo uma teoria educacional. Às vezes sentem que a educação nascida dali não está ocorrendo a contento. Decidem então que a teoria empregada não funciona. Mas, na verdade, ela funcionou mesclada com outras, não declaradas, que já estavam incorporadas aos hábitos de pensamento e ação do professor. Uma teoria desempenhou um papel na prática, ainda que esta teoria não seja aquela que o professor imagina ter aplicado.

Isso ocorre por uma questão simples: não se muda uma ação profissional facilmente. Alguém que tenta mudar sua ação profissional, sua prática, por conta de uma nova teoria, não vai fazê-lo da noite para o dia. E conforme o que se quer mudar, não ocorre a transformação esperada nem em uma ou duas ou três gerações. Na prática, uma série de pressupostos da teoria não proclamada (não raro, a teoria anteriormente instalada) dá suas cartas. Assim, a sensação que o professor tem é que sua prática não funciona porque ela não é mais a sua velha prática guiada por sua velha teoria, mas nem a nova. Ela é uma confluência do novo com o velho, gerando uma prática que pode, inclusive, ficar anulada por vetores teóricos que se colocam em direção, sentido e módulos contrários.

A disciplina Filosofia da Educação nos cursos de pedagogia e demais licenciaturas, quando ministrada por mim, nada é senão uma tentativa de levar o aluno – que não raro já exerce algum cargo no magistério, ou está prestes a exercer – a reconhecer na prática que ele desenvolve qual é a efetiva teoria que está guiando sua ação pedagógica e sua maneira a sua compreensão da legislação que lhe cai na cabeça. Para tal, eu tento dar-lhe um panorama das grandes concepções teóricas a respeito da infância e da pedagogia, principalmente as diversas facetas entre o universo romântico de Rousseau e o universo iluminista de Descartes. Acrescento a isso, então, as várias disputas entre a pedagogia da Escola Nova (que bebe no romantismo fortemente) e a pedagogia da Escola Tradicional.

O objetivo é fazer com que o aluno perceba que a frase que ele tanto gosta, “na prática a teoria é outra”, tem sua razão de ser, mas não pelo que ele a pronuncia e, sim, pelo fato da mentalidade dos professores, caoticamente, espelhar e se nutrir do embate entre essas duas grandes pedagogias que, na base, bebem do romantismo e do iluminismo, com as inúmeras consequências disso para a arquitetura da escola, para a legislação estatal, para o cotidiano de sala de aula e as opções didáticas e de literatura.

Parece simples, não? Era relativamente simples, quando meus alunos já vinham alfabetizados e com alguma noção de história, geografia etc. Têm se tornado difícil, agora que até mesmo a cultura pedagógica existente no Ensino Médio, por conta da Escola Normal (ou Habilitação Magistério ou qualquer coisa equivalente), já não existe mais. O fracasso da escola média de hoje, atrelada ao fim da formação para o magistério no ensino médio, tem trazido para nós um aluno cru para a pedagogia e para as licenciaturas. E assim, o que era um caminho bom para ministrar a disciplina Filosofia da Educação, tornou-se, como tudo, árduo demais. Quem fica nisso, nessa profissão, tem algum problema emocional grave. Algum tipo de culto ao masoquismo, talvez. Mas, enfim, não podemos reclamar. No Brasil, é um perigo reclamar, pois podemos dar de cara, no dia seguinte, com uma realidade pior. Em educação, estranhamente, o Brasil mostra cotidianamente que não tem fundo do poço.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Postado originalmente no site:
http://ghiraldelli.pro.br/2011/05/21/o-que-faz-um-professor-de-filosofia-da-educacao/

ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido.  Fonte:    http://www. intermedi a. uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep        ...