quinta-feira, 27 de junho de 2019

A BUSCA DA VERDADE - uma breve análise do texto IV de Fédon

                                                                        Por Ana Idalina Carvalho Nunes*
A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, Museu Metropolitano de ArteNova Iorque.

          Fédon IV,  texto que tem no seu epílogo a morte de Sócrates, é permeado de  falas que nos permitem formular diferentes questões sobre o que realmente Platão quis deixar claro para o leitor neste texto. Entre tantas teses possíveis, apresento uma que defenderei através de argumentos baseados nas palavras do próprio Sócrates: Sócrates aceitou a morte com serenidade ou ele desejou a morte como um passo mais ousado na sua busca pela verdade? Em diversos trechos, apesar de não afirmar que a alma é imortal verdadeiramente, parece claro o posicionamento simpático de Sócrates às lendas e à tradição de uma forma geral, tema bastante discutido nesta última conversa do filósofo com seus discípulos. E a ideia de imortalidade de alma é o atrativo que move intensamente Sócrates a aceitar sua condenação e passar a desejar a morte, como viagem de busca de conhecimento num mundo perfeito.
          Logo no início do texto “Resposta a Cebes”, Sócrates, para certificar-se de que  compreendera perfeitamente o que Cebes queria saber, pergunta a ele se o que desejava era que se demonstrasse que a alma era indestrutível e imortal, ideia que, uma vez ausente no pensamento do filósofo que está prestes a morrer, tiraria dele a confiança, a convicção de ir encontrar no além uma felicidade jamais alcançada na Terra. Parece-me que, nas entrelinhas dessa fala a Cebes, Sócrates fala de si próprio, do sentimento que o move naquele momento em que a vida lhe resta por um fio.  De acordo com o relato de Fédon a Equécrates, Sócrates estava sereno, e sua serenidade – acredito nisso - era alimentada pela confiança e pela convicção que ele tinha de que iria encontrar no além uma felicidade grandiosa. E em que consistia a felicidade para Sócrates? Qual era a sua busca incessante, aquela causa para a qual dedicou toda a sua vida? A felicidade grandiosa para Sócrates era encontrar  a verdade, a verdade em si –  presente apenas no mundo das ideias, no Hades, onde ele pretendia estar naquele mesmo dia.
          Posso complementar esse pensamento transcrevendo outro trecho da conversa, em que Sócrates afirma: “Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele  belo em si” (pág. 42). Levando em consideração suas palavras, podemos concluir que ele estava também firmemente convencido de que o que torna possível encontrar a verdade é a existência da verdade em si. E a possibilidade de encontrar essa verdade em si o atraía fortemente – quem sabe a ponto de fazê-lo desejar a morte.
          Sócrates, em várias partes do texto Fédon IV, cita  as lendas, e tais citações nos levam a crer que seus pontos de vista coincidiam com algumas dessas histórias. Pense comigo: Você citaria um autor ou determinada obra, repetidas vezes, apresentando argumentos que fortalecessem as ideias desse autor ou obra, se não compartilhasse dos mesmos pensamentos? Caso desprezasse uma obra, você a citaria apresentando argumentos que fizessem o leitor desprezá-la tanto quanto você a despreza ou tentaria argumentar a favor de tal obra? Claro que iria querer fazer com que o leitor pensasse como você, certo? E o que Sócrates faz a respeito das lendas? Ele tenta encontrar argumentos que fortaleçam a ideia da existência do Hades, ideias sobre o destino das almas boas e das almas ruins, enfim, embora não afirme a existência do Hades e de tudo o que envolve a ideia de imortalidade da alma, Sócrates ampara tanto sua tese (muitas vezes até a própria lenda) com bons argumentos.
          Outra razão que nos permite perceber o desejo de Sócrates em atingir a verdade em si está amparado no trecho final da página 51, quando ele fala de suas opiniões a respeito da terra e de suas regiões. Ele diz que, na verdade. o homem mora num buraco da terra e acredita ver o céu, quando vê apenas o ar. Sócrates fala que se tivéssemos a chance de voar e contemplar longamente o que existe acima da terra, verificaríamos que é lá que  estão “o céu verdadeiro, a luz verdadeira e a terra verdadeira”, - a que poderíamos somar também a noção de verdade em si. Após fazer tal afirmação, entretanto, declara se tratar de uma lenda. As seis páginas seguintes são dedicadas a esta lenda, que Sócrates narra com entusiasmo, interpretando fatos da mitologia com grande liberdade poética,  falando sobre essa outra terra, a terra verdadeira, onde se é possível entrar em contato com as divindades face a face, onde a verdadeira felicidade existe. Ora, ninguém fala tão entusiasmadamente de um assunto que não lhe seja simpático, de um pensamento pelo qual não sinta afinidade. Sócrates buscava a verdade em si e, reafirmo, sentia atração pela morte porque acreditava encontrar no Hades a sabedoria que almejava. Se durante toda a sua vida ele se despojou dos prazeres materiais, naquele momento  não importava para Sócrates mais nada que se relacionasse à vida do corpo;  era a alma, apenas a alma que lhe interessava, mais que em toda a sua vida passada. Antes mesmo de morrer, ele já se sentia liberto do corpo e sentia necessidade de consumar a própria morte.
          Mais de uma vez neste mesmo texto ele afirmou ser uma  loucura, uma falta de bom senso um homem acreditar que tais lendas fossem, na realidade, exatamente como aparecem descritas. Mas diz também que acreditar ser semelhante o que se dá “com nossas almas e seu destino é uma opinião boa e digna de confiança”. Então, embora aconselhe que não se deva que a lenda seja uma verdade, diz que é bom e confiável acreditar na semelhança da lenda com a verdade. E fala ainda que é preciso repetir a lenda mitologica como fórmula mágica e é por isso que ele a repete tantas vezes (pág. 55) – o que torna explícita a sua simpatia pelas ideias transmitidas por ela.
          No epílogo, que relata os momentos finais de sua vida, Sócrates perde a paciência com Críton que, sem conseguir entender a importância que tem para Sócrates o momento que ele está por viver, a alegria que sente em seguir para o Hades, preocupa-se com o destino do corpo de Sócrates, perguntando como quer ser enterrado. Ele já não se aceita mais como corpo, mas apenas e exclusivamente como alma.  Adianta-se em tomar o veneno, ainda sabendo que poderia esperar mais um pouco. E anda de um lado para outro, cumprindo as recomendações para que a cicuta aja adequadamente. Antecipa-se, como criança que solta-se das mãos dos pais e  sai correndo, quando vê à sua frente um parque de diversões – e o além, a outra vida, para Sócrates - vale lembrar -  é muito mais que um parque de diversões,  é a oportunidade de deparar-se com o belo em si, com a verdade em si, com a plenitude; é a  oportunidade de estar face a face com a divindade, com outros mais inteligentes que ele. Sócrates brinda essa passagem de um mundo para outro,  como quem comemora, ao ganhar uma bolsa de estudos para universidade de um país distante, sabendo antecipadamente o quão preciosos serão os conhecimentos que adquirirá naquele lugar. “Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços”, relatou Fédon a Equécrates, falando de como Sócrates tomou a cicuta. Na verdade, Sócrates empunhou a taça de veneno com o cuidado de quem toma um remédio que lhe trará o bem que mais se quer – no caso de Sócrates, a libertação da alma.
       Pelo menos até que um contra-argumento os lance por terra,  creio que os argumentos apresentados demonstram com clareza a intenção suicida de Sócrates.  Um suicídio belo,  ao estilo de sua filosofia, que tranforma o epílogo numa melodia suave, uma harmonia perfeita, harmonia em si. Deixar destruir o próprio corpo em benefício da alma que, imortal, segue etérea o seu caminho para a evolução.          
           Fédon IV,  texto que tem no seu epílogo a morte de Sócrates, é permeado de  falas que nos permitem formular diferentes questões sobre o que realmente Platão quis deixar claro para o leitor neste texto. Entre tantas teses possíveis, apresento uma que defenderei através de argumentos baseados nas palavras do próprio Sócrates: Sócrates aceitou a morte com serenidade ou ele desejou a morte como um passo mais ousado na sua busca pela verdade? Em diversos trechos, apesar de não afirmar que a alma é imortal verdadeiramente, parece claro o posicionamento simpático de Sócrates às lendas e à tradição de uma forma geral, tema bastante discutido nesta última conversa do filósofo com seus discípulos. E a ideia de imortalidade de alma é o atrativo que move intensamente Sócrates a aceitar sua condenação e passar a desejar a morte, como viagem de busca de conhecimento num mundo perfeito.

          Logo no início do texto “Resposta a Cebes”, Sócrates, para certificar-se de que  compreendera perfeitamente o que Cebes queria saber, pergunta a ele se o que desejava era que se demonstrasse que a alma era indestrutível e imortal, ideia que, uma vez ausente no pensamento do filósofo que está prestes a morrer, tiraria dele a confiança, a convicção de ir encontrar no além uma felicidade jamais alcançada na Terra. Parece-me que, nas entrelinhas dessa fala a Cebes, Sócrates fala de si próprio, do sentimento que o move naquele momento em que a vida lhe resta por um fio.  De acordo com o relato de Fédon a Equécrates, Sócrates estava sereno, e sua serenidade – acredito nisso - era alimentada pela confiança e pela convicção que ele tinha de que iria encontrar no além uma felicidade grandiosa. E em que consistia a felicidade para Sócrates? Qual era a sua busca incessante, aquela causa para a qual dedicou toda a sua vida? A felicidade grandiosa para Sócrates era encontrar  a verdade, a verdade em si –  presente apenas no mundo das ideias, no Hades, onde ele pretendia estar naquele mesmo dia.
          Posso complementar esse pensamento transcrevendo outro trecho da conversa, em que Sócrates afirma: “Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele  belo em si” (pág. 42). Levando em consideração suas palavras, podemos concluir que ele estava também firmemente convencido de que o que torna possível encontrar a verdade é a existência da verdade em si. E a possibilidade de encontrar essa verdade em si o atraía fortemente – quem sabe a ponto de fazê-lo desejar a morte.
          Sócrates, em várias partes do texto Fédon IV, cita  as lendas, e tais citações nos levam a crer que seus pontos de vista coincidiam com algumas dessas histórias. Pense comigo: Você citaria um autor ou determinada obra, repetidas vezes, apresentando argumentos que fortalecessem as ideias desse autor ou obra, se não compartilhasse dos mesmos pensamentos? Caso desprezasse uma obra, você a citaria apresentando argumentos que fizessem o leitor desprezá-la tanto quanto você a despreza ou tentaria argumentar a favor de tal obra? Claro que iria querer fazer com que o leitor pensasse como você, certo? E o que Sócrates faz a respeito das lendas? Ele tenta encontrar argumentos que fortaleçam a ideia da existência do Hades, ideias sobre o destino das almas boas e das almas ruins, enfim, embora não afirme a existência do Hades e de tudo o que envolve a ideia de imortalidade da alma, Sócrates ampara tanto sua tese (muitas vezes até a própria lenda) com bons argumentos.
          Outra razão que nos permite perceber o desejo de Sócrates em atingir a verdade em si está amparado no trecho final da página 51, quando ele fala de suas opiniões a respeito da terra e de suas regiões. Ele diz que, na verdade. o homem mora num buraco da terra e acredita ver o céu, quando vê apenas o ar. Sócrates fala que se tivéssemos a chance de voar e contemplar longamente o que existe acima da terra, verificaríamos que é lá que  estão “o céu verdadeiro, a luz verdadeira e a terra verdadeira”, - a que poderíamos somar também a noção de verdade em si. Após fazer tal afirmação, entretanto, declara se tratar de uma lenda. As seis páginas seguintes são dedicadas a esta lenda, que Sócrates narra com entusiasmo, interpretando fatos da mitologia com grande liberdade poética,  falando sobre essa outra terra, a terra verdadeira, onde se é possível entrar em contato com as divindades face a face, onde a verdadeira felicidade existe. Ora, ninguém fala tão entusiasmadamente de um assunto que não lhe seja simpático, de um pensamento pelo qual não sinta afinidade. Sócrates buscava a verdade em si e, reafirmo, sentia atração pela morte porque acreditava encontrar no Hades a sabedoria que almejava. Se durante toda a sua vida ele se despojou dos prazeres materiais, naquele momento  não importava para Sócrates mais nada que se relacionasse à vida do corpo;  era a alma, apenas a alma que lhe interessava, mais que em toda a sua vida passada. Antes mesmo de morrer, ele já se sentia liberto do corpo e sentia necessidade de consumar a própria morte.
          Mais de uma vez neste mesmo texto ele afirmou ser uma  loucura, uma falta de bom senso um homem acreditar que tais lendas fossem, na realidade, exatamente como aparecem descritas. Mas diz também que acreditar ser semelhante o que se dá “com nossas almas e seu destino é uma opinião boa e digna de confiança”. Então, embora aconselhe que não se deva que a lenda seja uma verdade, diz que é bom e confiável acreditar na semelhança da lenda com a verdade. E fala ainda que é preciso repetir a lenda mitológica como fórmula mágica e é por isso que ele a repete tantas vezes (pág. 55) – o que torna explícita a sua simpatia pelas ideias transmitidas por ela.
          No epílogo, que relata os momentos finais de sua vida, Sócrates perde a paciência com Críton que, sem conseguir entender a importância que tem para Sócrates o momento que ele está por viver, a alegria que sente em seguir para o Hades, preocupa-se com o destino do corpo de Sócrates, perguntando como quer ser enterrado. Ele já não se aceita mais como corpo, mas apenas e exclusivamente como alma.  Adianta-se em tomar o veneno, ainda sabendo que poderia esperar mais um pouco. E anda de um lado para outro, cumprindo as recomendações para que a cicuta aja adequadamente. Antecipa-se, como criança que solta-se das mãos dos pais e  sai correndo, quando vê à sua frente um parque de diversões – e o além, a outra vida, para Sócrates - vale lembrar -  é muito mais que um parque de diversões,  é a oportunidade de deparar-se com o belo em si, com a verdade em si, com a plenitude; é a  oportunidade de estar face a face com a divindade, com outros mais inteligentes que ele. Sócrates brinda essa passagem de um mundo para outro,  como quem comemora, ao ganhar uma bolsa de estudos para universidade de um país distante, sabendo antecipadamente o quão preciosos serão os conhecimentos que adquirirá naquele lugar. “Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços”, relatou Fédon a Equécrates, falando de como Sócrates tomou a cicuta. Na verdade, Sócrates empunhou a taça de veneno com o cuidado de quem toma um remédio que lhe trará o bem que mais se quer – no caso de Sócrates, a libertação da alma.
          Pelo menos até que um contra-argumento os lance por terra,  creio que os argumentos apresentados demonstram com clareza a intenção suicida de Sócrates.  Um suicídio belo,  ao estilo de sua filosofia, que transforma o epílogo numa melodia suave, uma harmonia perfeita, harmonia em si. Deixar destruir o próprio corpo em benefício da alma que, imortal, segue etérea o seu caminho para a evolução.

*Este foi um dos primeiros textos escritos por mim, ainda no primeiro período do curso de Filosofia (UFJF, 2010), disciplina de Antropologia Filosófica I. 
CITAR COMO:

NUNES, A. I. C. A busca da verdade. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 27 jun. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/a-busca-da-verdade-no-texto-iv-de-fedon.html  Acesso em (data de acesso).

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