Por Ana Idalina Carvalho Nunes* |
A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque. |
Fédon IV, texto que tem no seu epílogo a morte de
Sócrates, é permeado de falas que nos
permitem formular diferentes questões sobre o que realmente Platão quis deixar
claro para o leitor neste texto. Entre tantas teses possíveis, apresento uma
que defenderei através de argumentos baseados nas palavras do próprio Sócrates:
Sócrates aceitou a morte com serenidade ou ele desejou a morte como um passo
mais ousado na sua busca pela verdade? Em diversos trechos, apesar de não
afirmar que a alma é imortal verdadeiramente, parece claro o posicionamento
simpático de Sócrates às lendas e à tradição de uma forma geral, tema bastante
discutido nesta última conversa do filósofo com seus discípulos. E a ideia de
imortalidade de alma é o atrativo que move intensamente Sócrates a aceitar sua
condenação e passar a desejar a morte, como viagem de busca de conhecimento num
mundo perfeito.
Logo no início do texto “Resposta a
Cebes”, Sócrates, para certificar-se de que
compreendera perfeitamente o que Cebes queria saber, pergunta a ele se o
que desejava era que se demonstrasse que a alma era indestrutível e imortal,
ideia que, uma vez ausente no pensamento do filósofo que está prestes a morrer,
tiraria dele a confiança, a convicção de ir encontrar no além uma felicidade
jamais alcançada na Terra. Parece-me que, nas entrelinhas dessa fala a Cebes,
Sócrates fala de si próprio, do sentimento que o move naquele momento em que a
vida lhe resta por um fio. De acordo com
o relato de Fédon a Equécrates, Sócrates estava sereno, e sua serenidade –
acredito nisso - era alimentada pela confiança e pela convicção que ele tinha
de que iria encontrar no além uma felicidade grandiosa. E em que consistia a
felicidade para Sócrates? Qual era a sua busca incessante, aquela causa para a
qual dedicou toda a sua vida? A felicidade grandiosa para Sócrates era
encontrar a verdade, a verdade em si
– presente apenas no mundo das ideias,
no Hades, onde ele pretendia estar naquele mesmo dia.
Posso complementar esse pensamento
transcrevendo outro trecho da conversa, em que Sócrates afirma: “Quanto a
mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até
ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si” (pág. 42). Levando em
consideração suas palavras, podemos concluir que ele estava também firmemente
convencido de que o que torna possível encontrar a verdade é a existência da
verdade em si. E a possibilidade de encontrar essa verdade em si o atraía
fortemente – quem sabe a ponto de fazê-lo desejar a morte.
Sócrates, em várias partes do texto
Fédon IV, cita as lendas, e tais
citações nos levam a crer que seus pontos de vista coincidiam com algumas
dessas histórias. Pense comigo: Você citaria um autor ou determinada obra,
repetidas vezes, apresentando argumentos que fortalecessem as ideias desse
autor ou obra, se não compartilhasse dos mesmos pensamentos? Caso desprezasse
uma obra, você a citaria apresentando argumentos que fizessem o leitor desprezá-la
tanto quanto você a despreza ou tentaria argumentar a favor de tal obra? Claro
que iria querer fazer com que o leitor pensasse como você, certo? E o que
Sócrates faz a respeito das lendas? Ele tenta encontrar argumentos que
fortaleçam a ideia da existência do Hades, ideias sobre o destino das almas
boas e das almas ruins, enfim, embora não afirme a existência do Hades e de
tudo o que envolve a ideia de imortalidade da alma, Sócrates ampara tanto sua
tese (muitas vezes até a própria lenda) com bons argumentos.
Outra razão que nos permite perceber o
desejo de Sócrates em atingir a verdade em si está amparado no trecho final da
página 51, quando ele fala de suas opiniões a respeito da terra e de suas
regiões. Ele diz que, na verdade. o homem mora num buraco da terra e acredita
ver o céu, quando vê apenas o ar. Sócrates fala que se tivéssemos a chance de
voar e contemplar longamente o que existe acima da terra, verificaríamos que é
lá que estão “o céu verdadeiro, a luz
verdadeira e a terra verdadeira”, - a que poderíamos somar também a noção
de verdade em si. Após fazer tal afirmação, entretanto, declara se tratar de
uma lenda. As seis páginas seguintes são dedicadas a esta lenda, que Sócrates
narra com entusiasmo, interpretando fatos da mitologia com grande liberdade
poética, falando sobre essa outra terra,
a terra verdadeira, onde se é possível entrar em contato com as divindades face
a face, onde a verdadeira felicidade existe. Ora, ninguém fala tão
entusiasmadamente de um assunto que não lhe seja simpático, de um pensamento
pelo qual não sinta afinidade. Sócrates buscava a verdade em si e, reafirmo,
sentia atração pela morte porque acreditava encontrar no Hades a sabedoria que
almejava. Se durante toda a sua vida ele se despojou dos prazeres materiais,
naquele momento não importava para
Sócrates mais nada que se relacionasse à vida do corpo; era a alma, apenas a alma que lhe
interessava, mais que em toda a sua vida passada. Antes mesmo de morrer, ele já
se sentia liberto do corpo e sentia necessidade de consumar a própria morte.
Mais de uma vez neste mesmo texto ele
afirmou ser uma loucura, uma falta de
bom senso um homem acreditar que tais lendas fossem, na realidade, exatamente
como aparecem descritas. Mas diz também que acreditar ser semelhante o que se
dá “com nossas almas e seu destino é uma opinião boa e digna de confiança”.
Então, embora aconselhe que não se deva que a lenda seja uma verdade, diz que é
bom e confiável acreditar na semelhança da lenda com a verdade. E fala ainda
que é preciso repetir a lenda mitologica como fórmula mágica e é por isso que
ele a repete tantas vezes (pág. 55) – o que torna explícita a sua simpatia
pelas ideias transmitidas por ela.
No epílogo, que relata os momentos
finais de sua vida, Sócrates perde a paciência com Críton que, sem conseguir
entender a importância que tem para Sócrates o momento que ele está por viver,
a alegria que sente em seguir para o Hades, preocupa-se com o destino do corpo
de Sócrates, perguntando como quer ser enterrado. Ele já não se aceita mais
como corpo, mas apenas e exclusivamente como alma. Adianta-se em tomar o veneno, ainda sabendo
que poderia esperar mais um pouco. E anda de um lado para outro, cumprindo as
recomendações para que a cicuta aja adequadamente. Antecipa-se, como criança
que solta-se das mãos dos pais e sai
correndo, quando vê à sua frente um parque de diversões – e o além, a outra
vida, para Sócrates - vale lembrar - é
muito mais que um parque de diversões, é
a oportunidade de deparar-se com o belo em si, com a verdade em si, com a
plenitude; é a oportunidade de estar
face a face com a divindade, com outros mais inteligentes que ele. Sócrates
brinda essa passagem de um mundo para outro,
como quem comemora, ao ganhar uma bolsa de estudos para universidade de
um país distante, sabendo antecipadamente o quão preciosos serão os
conhecimentos que adquirirá naquele lugar. “Este a empunhou, Equécrates,
conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração,
nem da cor do rosto, nem dos seus traços”, relatou Fédon a Equécrates,
falando de como Sócrates tomou a cicuta. Na verdade, Sócrates empunhou a taça
de veneno com o cuidado de quem toma um remédio que lhe trará o bem que mais se
quer – no caso de Sócrates, a libertação da alma.
Pelo menos até que um contra-argumento
os lance por terra, creio que os
argumentos apresentados demonstram com clareza a intenção suicida de
Sócrates. Um suicídio belo, ao estilo de sua filosofia, que tranforma o
epílogo numa melodia suave, uma harmonia perfeita, harmonia em si. Deixar
destruir o próprio corpo em benefício da alma que, imortal, segue etérea o seu
caminho para a evolução.
Fédon IV, texto que tem no seu epílogo a morte de
Sócrates, é permeado de falas que nos
permitem formular diferentes questões sobre o que realmente Platão quis deixar
claro para o leitor neste texto. Entre tantas teses possíveis, apresento uma
que defenderei através de argumentos baseados nas palavras do próprio Sócrates:
Sócrates aceitou a morte com serenidade ou ele desejou a morte como um passo
mais ousado na sua busca pela verdade? Em diversos trechos, apesar de não
afirmar que a alma é imortal verdadeiramente, parece claro o posicionamento
simpático de Sócrates às lendas e à tradição de uma forma geral, tema bastante
discutido nesta última conversa do filósofo com seus discípulos. E a ideia de
imortalidade de alma é o atrativo que move intensamente Sócrates a aceitar sua
condenação e passar a desejar a morte, como viagem de busca de conhecimento num
mundo perfeito.
Logo no início do texto “Resposta a
Cebes”, Sócrates, para certificar-se de que
compreendera perfeitamente o que Cebes queria saber, pergunta a ele se o
que desejava era que se demonstrasse que a alma era indestrutível e imortal,
ideia que, uma vez ausente no pensamento do filósofo que está prestes a morrer,
tiraria dele a confiança, a convicção de ir encontrar no além uma felicidade
jamais alcançada na Terra. Parece-me que, nas entrelinhas dessa fala a Cebes,
Sócrates fala de si próprio, do sentimento que o move naquele momento em que a
vida lhe resta por um fio. De acordo com
o relato de Fédon a Equécrates, Sócrates estava sereno, e sua serenidade –
acredito nisso - era alimentada pela confiança e pela convicção que ele tinha
de que iria encontrar no além uma felicidade grandiosa. E em que consistia a
felicidade para Sócrates? Qual era a sua busca incessante, aquela causa para a
qual dedicou toda a sua vida? A felicidade grandiosa para Sócrates era
encontrar a verdade, a verdade em si
– presente apenas no mundo das ideias,
no Hades, onde ele pretendia estar naquele mesmo dia.
Posso complementar esse pensamento
transcrevendo outro trecho da conversa, em que Sócrates afirma: “Quanto a
mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até
ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si” (pág. 42). Levando em
consideração suas palavras, podemos concluir que ele estava também firmemente
convencido de que o que torna possível encontrar a verdade é a existência da
verdade em si. E a possibilidade de encontrar essa verdade em si o atraía
fortemente – quem sabe a ponto de fazê-lo desejar a morte.
Sócrates, em várias partes do texto
Fédon IV, cita as lendas, e tais
citações nos levam a crer que seus pontos de vista coincidiam com algumas
dessas histórias. Pense comigo: Você citaria um autor ou determinada obra,
repetidas vezes, apresentando argumentos que fortalecessem as ideias desse
autor ou obra, se não compartilhasse dos mesmos pensamentos? Caso desprezasse
uma obra, você a citaria apresentando argumentos que fizessem o leitor desprezá-la
tanto quanto você a despreza ou tentaria argumentar a favor de tal obra? Claro
que iria querer fazer com que o leitor pensasse como você, certo? E o que
Sócrates faz a respeito das lendas? Ele tenta encontrar argumentos que
fortaleçam a ideia da existência do Hades, ideias sobre o destino das almas
boas e das almas ruins, enfim, embora não afirme a existência do Hades e de
tudo o que envolve a ideia de imortalidade da alma, Sócrates ampara tanto sua
tese (muitas vezes até a própria lenda) com bons argumentos.
Outra razão que nos permite perceber o
desejo de Sócrates em atingir a verdade em si está amparado no trecho final da
página 51, quando ele fala de suas opiniões a respeito da terra e de suas
regiões. Ele diz que, na verdade. o homem mora num buraco da terra e acredita
ver o céu, quando vê apenas o ar. Sócrates fala que se tivéssemos a chance de
voar e contemplar longamente o que existe acima da terra, verificaríamos que é
lá que estão “o céu verdadeiro, a luz
verdadeira e a terra verdadeira”, - a que poderíamos somar também a noção
de verdade em si. Após fazer tal afirmação, entretanto, declara se tratar de
uma lenda. As seis páginas seguintes são dedicadas a esta lenda, que Sócrates
narra com entusiasmo, interpretando fatos da mitologia com grande liberdade
poética, falando sobre essa outra terra,
a terra verdadeira, onde se é possível entrar em contato com as divindades face
a face, onde a verdadeira felicidade existe. Ora, ninguém fala tão
entusiasmadamente de um assunto que não lhe seja simpático, de um pensamento
pelo qual não sinta afinidade. Sócrates buscava a verdade em si e, reafirmo,
sentia atração pela morte porque acreditava encontrar no Hades a sabedoria que
almejava. Se durante toda a sua vida ele se despojou dos prazeres materiais,
naquele momento não importava para
Sócrates mais nada que se relacionasse à vida do corpo; era a alma, apenas a alma que lhe
interessava, mais que em toda a sua vida passada. Antes mesmo de morrer, ele já
se sentia liberto do corpo e sentia necessidade de consumar a própria morte.
Mais de uma vez neste mesmo texto ele
afirmou ser uma loucura, uma falta de
bom senso um homem acreditar que tais lendas fossem, na realidade, exatamente
como aparecem descritas. Mas diz também que acreditar ser semelhante o que se
dá “com nossas almas e seu destino é uma opinião boa e digna de confiança”.
Então, embora aconselhe que não se deva que a lenda seja uma verdade, diz que é
bom e confiável acreditar na semelhança da lenda com a verdade. E fala ainda
que é preciso repetir a lenda mitológica como fórmula mágica e é por isso que
ele a repete tantas vezes (pág. 55) – o que torna explícita a sua simpatia
pelas ideias transmitidas por ela.
No epílogo, que relata os momentos
finais de sua vida, Sócrates perde a paciência com Críton que, sem conseguir
entender a importância que tem para Sócrates o momento que ele está por viver,
a alegria que sente em seguir para o Hades, preocupa-se com o destino do corpo
de Sócrates, perguntando como quer ser enterrado. Ele já não se aceita mais
como corpo, mas apenas e exclusivamente como alma. Adianta-se em tomar o veneno, ainda sabendo
que poderia esperar mais um pouco. E anda de um lado para outro, cumprindo as
recomendações para que a cicuta aja adequadamente. Antecipa-se, como criança
que solta-se das mãos dos pais e sai
correndo, quando vê à sua frente um parque de diversões – e o além, a outra
vida, para Sócrates - vale lembrar - é
muito mais que um parque de diversões, é
a oportunidade de deparar-se com o belo em si, com a verdade em si, com a
plenitude; é a oportunidade de estar
face a face com a divindade, com outros mais inteligentes que ele. Sócrates
brinda essa passagem de um mundo para outro,
como quem comemora, ao ganhar uma bolsa de estudos para universidade de
um país distante, sabendo antecipadamente o quão preciosos serão os
conhecimentos que adquirirá naquele lugar. “Este a empunhou, Equécrates,
conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração,
nem da cor do rosto, nem dos seus traços”, relatou Fédon a Equécrates,
falando de como Sócrates tomou a cicuta. Na verdade, Sócrates empunhou a taça
de veneno com o cuidado de quem toma um remédio que lhe trará o bem que mais se
quer – no caso de Sócrates, a libertação da alma.
Pelo menos até que um contra-argumento
os lance por terra, creio que os
argumentos apresentados demonstram com clareza a intenção suicida de
Sócrates. Um suicídio belo, ao estilo de sua filosofia, que transforma o
epílogo numa melodia suave, uma harmonia perfeita, harmonia em si. Deixar
destruir o próprio corpo em benefício da alma que, imortal, segue etérea o seu
caminho para a evolução.
*Este foi um dos primeiros textos escritos por mim, ainda no primeiro período do curso de Filosofia (UFJF, 2010), disciplina de Antropologia Filosófica I.
CITAR COMO:*Este foi um dos primeiros textos escritos por mim, ainda no primeiro período do curso de Filosofia (UFJF, 2010), disciplina de Antropologia Filosófica I.
NUNES, A. I. C. A busca da verdade. Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 27 jun. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/06/a-busca-da-verdade-no-texto-iv-de-fedon.html Acesso em (data de acesso).
Nenhum comentário:
Postar um comentário