quarta-feira, 10 de julho de 2019

SOBRE A OBRA: "A ANTROPOLOGIA DE RIVERS" (Org. Roberto Cardoso de Oliveira)


                                                     Por Ana Idalina Carvalho Nunes

1. História e etnologia (1920)

O autor inicia seu texto ressaltando o objetivo de destacar a importância da etnologia, no referente ao aspecto de contribuir para o progresso da História, colocando em foco a aproximação dessas duas áreas a partir de 1910, a década que antecede a escrita da obra em questão (1920). No período mais remoto, a antropologia era vista sob o ponto de vista do evolucionismo e o trabalho do antropólogo era, através da análise dos diferentes povos estudados, chegar a uma explicação única, regida pelas mesmas leis. Ou seja, acreditava-se que o processo de formação desses povos fosse o mesmo, independente do espaço geográfico ocupado.  E essa suposição tornava-se mais forte  através das tentativas de mostrar que existiam também razões  psicológicas  que funcionavam  como lei universal na constituição da mente humana.  Dentro desse mesmo pensamento,  supunha-se que depois da “dispersão original da humanidade”, com a  evolução  independente dos vários tipos de homem, que  partes isoladas de terra tenham interrompido sua comunicação umas com as outras, o que promoveu a separação e diferenciação de culturas. Olhando tal situação pelo viés psicológico,  supunha-se que essa separação de povos tenha se dado em razão da uniformidade da mente humana, que  se organizou socialmente, religiosamente e materialmente, respeitando as similaridades  das mentes.  Ou seja, o que a teoria evolucionista defendia era que, em tempos muito remotos, diferentes grupos humanos, partindo de  uma condição de total carência de cultura,  evoluíram em todas as partes do planeta de um mesmo modo. Essa evolução similar se deu, segundo o evolucionismo, pelo caráter de unidade da mente humana, como consequência similar a estímulos externos e internos. De acordo com esse pensamento, a história cultural está fundada em uma unidade psíquica através da qual todos os  grupos humanos de todas as partes seriam dotados do mesmo potencial de desenvolvimento evolucionário, embora existissem alguns com maior nível de evolução que outros, o que poderia acontecer por causa do clima, do solo, enfim, de fatores externos ao próprio homem.
            A grande crítica de Rivers ao evolucionismo referia-se à maneira simples como explicava a expansão da cultura. Segundo ele, “muitos costumes que antes eram considerados como produtos de um simples processo de evolução dentro de um povo isolado, de fato tem atrás deles uma história longa e tortuosa” (p. 241) que o etnólogo tem que desemaranhar.  Ele dá o nome de “escola histórica de etnologia” a essa nova antropologia, ressaltando que, diferente dos alemães, os ingleses não são oponentes da evolução, mas da apresentação como simples de algo que é extremamente complexo.  Em outras palavras, Rivers e os outros antropólogos difusionistas criticavam a  unilinearidade,  não concordavam com a reta constante e ascendente cultural que era apresentada e defendida pelos evolucionistas para explicar a expansão da cultura. Diferente do evolucionismo, o difusionismo via  a cultura como um mosaico de traços adquiridos de outras culturas, com origens e histórias totalmente variadas. Rivers explicava semelhanças e diferenças cultural através da combinação de migrações, adições e mesclas.
            O difusionismo acreditava que as diferenças e semelhanças culturais eram consequência da tendência humana para imitar e a absorver traços culturais, ao contrário do que pensavam os evolucionistas que acreditavam que a humanidade possui uma "unidade psíquica". Origem do conceito de área cultural: teve sua origem nas exigências práticas da investigação etnográfica americana. Foi elaborada como um instrumento para classificar e representar cartograficamente os grupos tribais. 
Rivers apresenta a necessidade de  o etnógrafo desvendar a história de povos que não possuem documentos escritos sobre sua história, cujas tradições orais aparecem tão misturadas com o traço mítico, a ponto de se tornar difícil distinguir o grau de sua historicidade. (p. 242).
            A partir de então ele passa a falar de seu livro, intitulado História da Sociedade Melanésia, onde ele desenvolveu um método de levantamento histórico de costumes e instituições que formavam a cultura social do povo que ele pesquisava. Segundo ele, foi através do estudo da cultura melanésia que ele conseguiu subsidiar sua ideia  estrutura social como organização dual. Segundo Rivers, “Nesta forma de sociedade a comunidade está dividida em duas metades que permanecem numa tal relação uma com a outra que um homem de uma metade é compelido  pelo costume social a casar com uma mulher da outra, as crianças da união pertencendo à metade da mulher” (p. 243). Dada esta estrutura social mais simples, a cultura melanésia foi  assumindo  outros  elementos mais complexos que, estudados historicamente, permitiram a compreensão da cultura melanésia como se apresentava na época em que Rivers desenvolveu seu estudo.
            Entre os recursos utilizados por ele para guiar sua pesquisa na Melanésia, Rivers cita o princípio da distribuição comum, o da conexão orgânica e um terceiro que, na verdade, é apenas extensão do segundo: associação de classe . O primeiro deles é aplicado quando o etnólogo encontra elementos de determinada cultura associados com  um outro elemento, isso em várias localidades investigadas. Quando isso acontece, o fato é usado para fundamentar a atribuição de costumes associados, instituições e objetos materiais a uma cultura. Já no caso oposto, quando não há uma conexão entre os elementos de uma cultura com outro elemento qualquer, pode-se dizer que  esta associação “ existiu em alguma parte e  alcançou pela transmissão seu presente lugar”. (p. 245).          
               Já o princípio da conexão orgânica, é aplicado, segundo Rivers, “quando dois elementos de cultura são encontrados estreitamente associados a outro formando partes constituintes de uma organização”.( p. 246).  Neste caso, acredita-se que eles são pertencentes a uma mesma cultura.  Finalmente, o princípio da associação de classe se refere às situações em que algumas classes sociais ou seções da comunidade são constituídas por representantes ou descendentes de colonizadores de fora.
            De acordo com Rivers, qualquer dos três princípios acima expostos, analisado isoladamente, acaba, fatalmente, sujeito a exceções. Entretanto, quando os três apontam para um mesmo foco, torna possível uma afirmação com alto grau de confiabilidade, de que elementos associados de cultura foram introduzidos ali “por um único e mesmo povo”. (p.247). A partir deste ponto de sua apresentação, Rivers apresenta uma situação hipotética que visa ilustrar a linha de pensamento do método que visa considerar a história na análise da constituição de cultura dos povos, mostrando o quanto, comumente, as hipóteses do etnólogo podem ser confirmadas pela pesquisa histórica. (p. 253)
            É importante, segundo Rivers, observar que o ponto de vista da história que está ligado à etnologia, difere do sentido da disciplina que leva este nome. Em primeiro lugar essa diferença está refletida no “caráter generalizado, impessoal e, em muitos casos abstrato, quando comparado com a concretividade  da história que se baseia em documentos literários”. (p. 255). Outra diferença reside na natureza da sua cronologia, já que a metodologia da análise  etnológica relaciona-se com a cronologia relativa, totalmente diferente da cronologia numérica ou absoluta. No método etnológico, segundo Rivers, a ordem cronológica não se refere a apresentar números exatos, dados exatos matematicamente, mas sim de dizer o que veio antes e o que veio depois, ou, nas palavras de Rivers, o etnólogo  “ficaria satisfeito  se conseguisse atingir conclusões que o habilitassem a dizer que uma influência ou forma de costume ou instituição precedeu ou sucedeu a outra na ordem do tempo”.(p. 256). E, para identificar essa ordem cronológica dos fatos, os vestígios literários são de fundamental importância para identificar, por exemplo, se uma instituição apareceu numa determinada sociedade como influência de outra que existiu mil anos antes ou depois de um certo dado cronológico. De acordo com Rivers, a cronologia marca o caráter de inexatidão que “deve ser sempre uma característica da história”(257-258).

2A unidade da antropologia (1922)

Nesta seção da obra  “A antropologia de Rivers”,  seu organizador, Roberto Cardoso de Oliveira,  apresenta praticamente a íntegra  do texto apresentado por Rivers na conferencia presidencial realizada no Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, em 1922. Rivers apresenta a importância de o pesquisador perceber a relação íntima que existe entre os ramos diversos da antropologia, formando uma unidade. De acordo com ele,

É uma característica das sociedades mais simples da terra que, apesar de ser possível distinguir em suas culturas os diferentes aspectos que rotulamos de sociais, políticos, econômicos, religiosos, estéticos, etc., estes aspectos são tão interdependentes, as funções sociais de diferentes espécies tão estreitamente relacionadas, que é inútil esperar entender qualquer setor da cultura sem um estudo extenso de outros setores, os quais têm ou parecem ter uma sociedade, tal como a nossa, um grau muito maior de independência. Ninguém pode esperar fazer mais do que um trabalho etnográfico de segunda linha numa sociedade simples, se especializar seus interesses e limitar sua atenção a um aspecto qualquer da vida do povo que está estudando. (p. 264).

Ou seja, para estudar um determinado aspecto de um grupo, é preciso compreender esse grupo no seu sentido histórico e amplo, compreender outros aspectos e outros processos, já que entende-se que estão todos interligados. De acordo com Rivers,  a chave da solução de um problema pode aparecer num contexto de perguntas e respostas que aparentemente nada têm a ver com esse problema. Ele frisa  também a questão da unidade da antropologia em conexão com seu sentido histórico e, segundo ele, o que voltou sua atenção para esse foco foi o estudo das sociedades humanas, levando-o a constatar que a unidade é característica necessária da sociedade, qualquer que ela seja, podendo mesmo esta unidade social ser comparada à unidade de todas as partes que compõem o organismo vivo, na promoção da integridade e harmonia desse organismo (p. 265).
Em sua proposta de demonstrar a unidade que existe entre os diversos ramos da antropologia, Rivers  aponta, como a área da antropologia mais intrinsecamente ligada à história, a arqueologia. Tratando-se do estudo de objetos manufaturados, monumentos e inscrições do passado,   arqueologia e história, juntas, podem contribuir grandemente para o conhecimento da história remota da humanidade, frisa ele.  O grande problema que existe é que muitas vezes etnólogos e antropólogos agem como se não houvesse ligação alguma entre o trabalho que um e outro desempenham e, para contribuir para a mudança desta situação, é que a comunicação é apresentada no congresso em que está inserida (p.267-268).
Rivers, num determinado ponto da comunicação, passa a abordar a importância da psicologia nas pesquisas arqueológicas. Segundo ele,

Deve sempre ser lembrado que um aspecto da cultura humana, que talvez seja o mais importante – o psicológico – a evidência fornecida pela arqueologia deve ser sempre deficiente. Monumentos, mesmo quando providos de inscrições, nunca podem dar qualquer evidencia, senão indireta e incompletas, das ideias, crenças e sentimentos do povo pelo qual os monumentos foram construídos ou as inscrições escritas (p. 268).

O que Rivers quer destacar aqui é que a riqueza da pesquisa, quando compreendida em seus múltiplos aspectos, quando entendido que esses aspectos são uma unidade, é que  torna-se possível perceber em monumentos da antiguidade um universo de pesquisa tão rico quanto o arqueológico. Através do estudo psicológico de  civilizações do passado,  por exemplo, torna-se possível compreender as culturas simples de raças selvagens e bárbaras do presente e por meio do estudo psicológico do indivíduo torna-se possível entender reações e caminhos tomados pelos grupos sociais (p. 270-271). 
Numa etapa final de sua comunicação, Rivers aborda  outros dois ramos importantes da antropologia: a filologia e a somatologia, destacando a visão que Malinowski sobre o entrelaçamento do estudo da língua com aspectos diversos da herança social. De acordo com Rivers, o estudo da língua passa a tomar um rumo mais produtivo e importante quando se deixa de dirigir a atenção para a forma e arranjo de palavras entre diferentes povos, para dar maior atenção “à relação com os resultados do estudo da fala por outros métodos e especialmente pelo método da patologia” p. 272). Ele então comenta a história de um oficial que teve um ferimento em seu córtex cerebral e que, em razão disso, perdeu sua capacidade de diferencias as cores. O interessante é que ele conseguia associar objetos que tinham cores iguais, passando a ter um padrão cognitivo semelhante à de alguns grupos mais primitivos. (p. 273). Ele destaca a escassez de estudiosos que se dedicam à somatologia, mesmo diante do fato de a coleta de dados nesse campo da pesquisa serem tão fáceis de conseguir, diferentemente de outras áreas (p. 275).
Ele finaliza, demonstrando sua grande preocupação em oferecer subsídios para que mais jovens fossem atraídos para os estudos antropológicos, frisando  ser este  “um campo que tem necessidade tão urgente de trabalhadores”(p. 277)


Texto analisado: 
RIVERS, W.H.R. (1920) "História e Etnologia", (1922) “A unidade da Antropologia”. In: OLIVEIRA, R.C. de (org.) A Antropologia de Rivers. Campinas, Ed. UNICAMP, 1991,  pp. 239-277.

*Trabalho de Teoria Antropológica apresentado à professora dra. Rogéria Dutra, do PPGCSO/UFJF,  pela mestranda Ana Idalina Carvalho Nunes (2015)

CITAR COMO:

NUNES, A. I. C. Sobre a obra "A antropologia de Rivers". In; Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 10 jul. 2019. Disponível em:https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/07/sobre-obra-antropologia-de-rivers-org.html          Acesso em: (data de acesso) 

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