quarta-feira, 3 de julho de 2019

QUESTÕES IMPORTANTES SOBRE A OBRA DE DOSTOIÉVSKI


Por Ana Idalina Carvalho Nunes

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1. O QUE É A ARTE PARA DOSTOIÉVSKI?

É uma interpretação do real, ao ponto que a realidade se torna fantasia e a fantasia uma realidade mais alta: por um lado a realidade, vista em seus traços mais reais e visíveis, torna-se transparente a uma realidade mais profunda e intensa, porque de natureza espiritual; por outro, a verdadeira realidade é apenas a realidade escondida e espiritual que não tem outro modo de se manifestar senão através da realidade visível e quotidiana. Dostoiévski entende sua arte como um “realismo superior”.


2. COMO SÃO AS PERSONAGENS DE DOSTOIÉVSKI?

Estão situados em um ambiente e na sociedade; elas têm posição social e possuem ou possuíram uma profissão. Contudo, os particulares da situação, da paisagem, das vestes… são raramente descritos; e as personagens não são reconhecidas por sua profissão. Kirilov é engenheiro de pontes, mas o leitor o reconhece como ateu místico e defensor do suicídio; Chatov é contador, mas é reconhecido como teórico do nacionalismo místico e messiânico. Na verdade, tudo aquilo que é visível e visto se transforma em fantasia; a fantasia, por sua vez, se transforma na figura de uma realidade superior; e a visão desta realidade superior é tão evidente que suprime a atenção aos particulares mais imediatamente visíveis, de maneira tal que nos levam a esquecer o visível imediato. Da mesma maneira, os empregados não são empregados, as prostitutas não são prostitutas mas algo diferente e superior; e é apenas este “algo mais” que conta realmente no mundo de Dostoiévski. as personagens de Dostoiévski mesmo que "fisicamente vestidos, socialmente colocados, ambientados em um espaço e em um tempo, vivem em uma realidade superior e em uma nudez espiritual. Elas nunca  fazem propriamente algo: não estão ocupados, não estão trabalhando; vão e vêm sem cessar, falam bastante e sobretudo vivem experiências importantes e decisivas. O que fazem estes homens e mulheres que não fazem nada, mas vivem intensamente e falam da experiência que vivem? Berdiaeff responde: meditam sobre a tragédia do homem, enfrentam o enigma do mundo.


3. COMO É O ESPAÇO EM DOSTOIÉVSKI?

A primeira coisa evidente é a falta da natureza, descrita com tanto amor na grande literatura russa. Suas paisagens são lugares referidos ao homem, são espaços interiores e espiritualizados, intimidades densas da presença humana, caixas de ressonância de dramas interiores e de secretas tragédias. Dostoiévski não é insensível à terra russa, mas esta não é um lugar geográfico nem uma paisagem natural: trata-se de um solo carregado de memórias humanas e uma substância mística densa de espiritualidade. Ele não deixa de descrever as cidades, de maneira particular Petersburgo, mas prefere os espaços exíguos e cheios de gente onde suas personagens vivem, se movem, conversam, misturam seus destinos e conjugam seus dramas. Os espaços, na verdade, são íntimos, espirituais, humanos, e símbolos daquilo que angustia suas personagens; e a razão pela qual as descrições dos espaços deixam tudo na névoa, na incerteza e no esquecimento é que o mundo físico é realmente real e visível apenas quando uma alma humana o torna lugar de seu sofrimento e de seu desespero.

4. COMO É O TEMPO EM DOSTOIÉVSKI?

O tempo, por sua vez, é sempre apressado. Em Dostoiévski tudo se desenvolve em um ritmo expressa e intencionalmente acelerado, de um modo muito mais rápido que o tempo normal de nossos relógios. Nele cada dia é uma época inteira, cada hora é uma penca de eventos, cada minuto é pleno de destino. Assim, Crime e castigo começa dois dias e meio antes de Raskólnikov cometer o assassinato, e continua durante um tempo estimado de mais ou menos duas semanas; os acontecimentos de O idiota se dão em apenas nove dias; toda a complicada ação de Os demônios acontece em um mês; os terríveis eventos de Os irmãos Karámazov requerem apenas sete dias. Espaço e tempo são bem diferentes de espaço e tempo reais e físicos: são espaços e tempos espiritualizados, lugares de dor e tragédia, minutos decisivos para todo um destino.

5. A ANTROPOLOGIA EM DOSTOIÉVSKI

A antropologia de Dostoiévski mostra-se imediatamente na própria configuração de suas personagens e em suas relações. Seus romances não são romances em sentido estrito: são tragédias em forma de romances. Os pensamentos de seus heróis não são opiniões, mas irradiações de idéias vivas; os seus sentimentos não são emoções pessoais, mas paixões que constroem e destroem um mundo; os seus encontros não são eventos, mas confluências ou divergência de mundos a fins ou opostos; suas vidas não são biografias mas destinos. As personagens de Dostoiévski são idéias em movimento, ideias vivas, ideias personificadas. Os heróis de Dostoiévski são “ideias personificadas”, isto é, não temporais e transitórios como indivíduos, nem abstratos e intemporais como conceitos, mas figuras onde se unem de forma indissolúvel tempo e eternidade: a eternidade vista na sua concreta presença no visível, e o tempo compreendido em sua constitutiva relação com a eternidade. Os acontecimentos envolvendo as personagens de Dostoiévski devem ser vistos sobre um pano de fundo eterno: o verdadeiro acesso aos seus romances se obtém quando se projeta a narração sobre este pano de fundo de eternidade que lhe constitui como que uma meta-história.

6. OS DEMÔNIOS (personagens)

Stavróguin é uma figura tenebrosa: enigmático mas iluminante, ele é um homem morto interiormente, mas que consegue dar vida aos outros. Ele é o astro em torno de quem gravita a ação: tudo parte dele e a ele retorna. Da plenitude de sua criatividade colocada sob o sinal da destruição saem sempre novas ideias, que aos poucos envolvem seus amigos, mas que culminam sempre em naufrágio, sem que ele sinta o menor remorso ou a menor responsabilidade. O tema do romance é a decifração do enigma Stavróguin. A rebelião de Stavróguin é mais profunda e radical que culmina na indiferença e no nada.  Stavróguin, por sua vez, não tem um escopo preciso, porque já superou toda lei e desta forma não consegue mais distinguir entre o bem e o mal: para ele bem e mal são a mesma coisa. Ele ignora completamente toda norma, todo limite, todo valor: a sua liberdade é puro arbítrio, e, não tendo diante de si nenhuma norma a violar, não tem também nenhum escopo a alcançar, e se dissolve na indiferença, no tédio e na experimentação. Stavróguin é uma natureza superior: foi uma criança doce e sensível; desenvolveu em si uma força de vontade invencível e um domínio de si seguro, ao ponto que seu caráter aparece como uma potência tranquila e misteriosa, calma e imperturbável, fria e inacessível; a sua beleza e a sua força encantam homens e mulheres, e cada um deriva de seu fascínio uma razão diferente, e de sua mente fértil uma ideia para viver e se alimentar. Mas ao lado desta inteligência, ele tem um coração vazio, deserto, sem vida. A sua calma é fria determinação, o seu domínio de si é desinteresse do puro expectador, o seu vigor é insensibilidade rígida, a sua força é demoníaca.

Ele se encontra além do bem e do mal porque sua liberdade arbitrária e ilimitada ignora toda distinção entre bem e mal. Desta incapacidade de distinguir entre bem e mal deriva a indiferença e a equivalência entre os dois termos: para Stavróguin é indiferente fazer o bem ou o mal, e o critério pelo qual ele realiza um ou outro é completamente indiferente à sua distinção. “Posso desejar fazer uma ação boa e sinto prazer em fazê-la; de igual modo desejo também uma ação má e sinto igualmente prazer”. E é exatamente deste absoluto amoralismo que Chatov o acusa. Kirílov com seu ateísmo trágico, Chátov com seu nacionalismo religioso exacerbado e Piotr com sua vontade de poder niilista são experimentações de Stavróguin, que de fato não adere intimamente a nenhuma destas idéias. E da mesma maneira a inocente menina, que ele violenta e leva ao suicídio e a demente Maria, com quem ele se casa por sádica curiosidade e perversa vontade de degradação. Mas no cinismo destas experimentações ditadas pelo tédio, inspiradas pela indiferença, congeladas pela insensibilidade, se aninha um elemento de falsidade, de mentira, de impostura que não escapa ao olhar sincero de Maria, que atravessa a máscara de Stavróguin e vê não um príncipe bom, mas seu sósia mau e cruel. A falsidade fundamental consiste em agir apenas como expectador de si mesmo: intimamente dividido, ator e expectador ao mesmo tempo, ele vê e estuda seu sósia enquanto comete os atos mais ignóbeis, e assim se ilude em não tomar parte; mas o seu sósia é sua maldade personificada e objetivada, o demoníaco que está nele. Este elemento de falsidade e mentira se insinua até mesmo no momento em que Stavróguin procura o bispo Tíkhon para confessar-se. Mas Tíkhon percebe imediatamente: nele o remorso e o arrependimento não se distinguem bem do prazer pela própria degradação. O pretenso arrependimento de Stavróguin não passa de uma mistura de auto-tortura e prazer, humilhação e orgulho. Ou seja, nada menos cristão e mais falso do que esta humildade inchada de soberba, esta auto-acusação cheia de vaidade, esta confissão que nada mais é que exaltação de si. Privadas de limites e de normas, a liberdade e a vontade de Stavróguin são uma grande força abandonada a si mesma, pois a pura e simples experimentação não constitui seu emprego suficiente e adequado: trata-se de um enorme desperdício e uma dispendiosa dissipação. 

Neste homem interiormente sem vida, profundamente inanimado, pobre como um pedaço de gelo, a força originária não se demonstra, não atesta a própria existência, não se atualiza em realizações positivas: ao contrário, tende a disperder-se e a exaurir-se: leva à dissolução, à desagregação, à morte. “Pode-se discutir eternamente sobre tudo, mas só consegui extravasar uma negação desprovida de qualquer magnanimidade e de qualquer força”. A sua disponibilidade é puramente negativa, o seu desempenho é morte interior, a sua inatividade é desagregação, a sua força é destruição. Não é por acaso que Stavróguin tem como alucinação a visão do demônio: o caráter demoníaco de sua vontade e a natureza satânica de sua perversão consistem neste espírito de negação e dissolução. A sua força, tão intimamente negativa, torna-se destruição dos outros e de si. Destruição dos outros, pois todo contato com ele é destrutivo: os homens que sofreram sua influência não são alimentados mas destruídos. Destruição de si, pois apenas o suicídio pode imprimir o selo do nada em uma vida vivida sob o signo do nada. O itinerário de Stavróguin culmina na destruição dos outros e de si. Este destino está implícito no caráter demoníaco de sua força; mas também é conteúdo de Stepan Trofímovith e seu filho Piotr. Ou seja, entre o idealismo inoperante dos utopistas (Stepan) e a anarquia sanguinária dos niilistas (Piotr) há uma filiação ideológica direta. A vontade de destruição do filho descende

7. O ADOLESCENTE (personagens)

Versilov - várias personagens têm como escopo descobrir o segredo de Versilov: elas têm esta ocupação como a ocupação mais séria de todas, pois se trata de descobrir o próprio enigma do destino humano.

8. CRIME E CASTIGO (personagens)

Raskólnikov  - A obra Crime e Castigo trata  do destino do homem, de maneira particular do homem soberbo centrado apenas em si mesmo: trata-se da história de Raskólnikov, que pretende se tornar um super-homem mas acaba  tornando-se um sub-homem. Assistimos então a dissolução de uma personalidade vigorosa que abusou de sua própria força: como pode o vazio de uma alma produzir um ser e mover o mundo? Como pode um niilista buscar melhorar o mundo? Raskolnikov vive de uma ideia à luz da qual parece logicamente permitido o homicídio de uma velha usurária inútil e danosa para ajudar os pobres explorados, humilhados e ofendidos. É singular o destino desta ideia: para o bem dos pobres chega-se à eliminação de uma vida humana. Existe um modo de querer e de fazer o bem que se inverte paradoxalmente em um querer a destruição e em um fazer o mal. Raskólnikov não é em si uma personagem má: é generoso, sofre e não suporta as injustiças do mundo dos homens; ama com ternura a mãe e a irmã; deseja ajudar os pobres, infelizes e sofredores; salvou crianças de um incêndio, ajudou um companheiro necessitado, privou-se de seu último dinheiro para ajudar a pobre família de Marmeladov; suscita a amizade e a admiração de Razumikin; vive cheio de sentimentos nobres, delicados e até mesmo religiosos; crê em Deus, em Cristo e na ressurreição de Lázaro; liga-se amorosamente a uma mulher que, por desgraça, se encontra marginalizada na sociedade, Sônia. Mas Raskólnikov não suporta a condição humana: ele então escolhe voluntariamente o homicídio para demonstrar a si mesmo a própria liberdade ilimitada; transgride deliberadamente a lei religiosa e moral para demonstrar a si mesmo de estar além do bem e do mal; decide deliberadamente assassinar um ser socialmente daninho para demonstrar a si mesmo de pertencer ao seleto número dos seres excepcionais para os quais tudo é permitido. Ele sustenta que os homens excepcionais, superiores, “napoleões”, são ao mesmo tempo benfeitores da humanidade e criminosos: cometem delitos, derramam sangue e transgridem leis humanas e divinas, mas fazem bem à humanidade. Disso deriva que, enquanto a massa tem o dever de observar a lei moral e obedecer os governantes, os seres excepcionais, por sua vez, não estão submetidos a lei alguma, e podem fazer tudo aquilo que querem, pois sua superioridade os eleva acima da maior parte dos homens. Pois bem, Raskólnikov quer ser um destes homens, e depois de meticulosa preparação assassina a velha usurária. Para demonstrar a si mesmo que é um super-homem, além do bem e do mal, realiza um “ato gratuito” contra a lei moral e social. Eis o pecado de Raskólnikov: o orgulho e a soberba; a infração da lei e a afirmação de si; a transgressão da norma e a pretensão de uma liberdade ilimitada. A rebelião e o titanismo. Mas o ato gratuito revela-se um completo fracasso. Raskólnikov se dá conta que soube apenas matar, mas não ultrapassou: matou a velha usurária, mas não superou a lei; cometeu um assassinato mas não se colocou acima da norma moral. Na verdade ele não matou a velha mas a si mesmo: o ato de liberdade absoluta, ilimitada, arbitrária, com o qual pretendia afirmar a si mesmo, isto é, o próprio direito a liberdade arbitrária, ilimitada e absoluta, negou inteiramente este direito. O assassinato da velha foi inútil, porque demonstrou que o homicida não é um Napoleão mas um piolho, e que a liberdade arbitrária e ilimitada nega a si mesma.

9. O IDIOTA (personagens)

Príncipe Míchkin - incompreensível aos homens tenebrosos, mas claro às almas puras e às crianças, é aquele que a todos compreende e que revela cada um a si mesmo: ele sabe resolver o enigma de cada um, esta é a tarefa que ele se deu. Em torno dele gravitam obscuras paixões: todos sentem-se atraídos por sua inocência, mas quase ninguém compreende que ele é e o que fará.

10. OS IRMÃOS KARAMÁZOV (personagens) 

A luz angélica e a obscuridade demoníaca lutam entre si, nos modos mais diversos; no interior do ânimo dos quatro irmãos, sem caracterizar de maneira exclusiva nenhum deles. De maneira bufonaria e cinicamente, o velho Karamázov afirma: “Menti, menti realmente durante toda a minha vida, menti todos os dias e todas as horas. Na verdade, sou a própria mentira, sou o pai da mentira.

Aliocha – angélico, possui as tendências Karamázov e luta continuamente contra as más tentações às quais, contra sua vontade, está exposto.

Smerdiakov - homem  tenebroso, Smerdiakov é  o assassino do velho pai, tem momentos de contemplação e de meditação sobre o mistério do mundo. Smerdiakov, sem experimentar nenhum remorso, matou o pai e depois, sem experimentar nenhuma exitação, suicidou-se: sua fúria destrutiva em primeiro lugar voltou-se contra os outros e depois contra si mesmo; sua atividade constituiu-se em negação que terminou por negar-se. Além da destruição dos outros e de si, a liberdade que pretende afirmar a si mesma, além da lei moral, acaba transformando-se em gosto pela infração, em prazer na transgressão. Trata-se da perversão, onde o mal é praticado não apenas por deliberada vontade de infringir a lei, mas também pelo prazer desta consciente e voluntária transgressão: fazer o mal por fazer o mal, ofender pelo gosto de ofender, ser feliz por cometer delitos.

Ivan - crê em Deus, mas nega a criação, tem em sonho a visão do demônio, e inverte a religião em ateísmo e em loucura;

Dmitri - é pecador, mas crê em Deus e no bem, e transforma o pecado em dor e salvação ao expiar uma culpa não cometida.

11. MEMÓRIAS DO SUBSOLO

Nas Memórias do subsolo, Dostoiévski busca investigar a liberdade e a personalidade do homem: à harmonia cósmica, que pretende absorver a humanidade na necessária legalidade do universo, o homem opõe o seu direito de combater arbitrariamente as verdades vinculantes da matemática; e à pretensa racionalidade da vida, que pretende ser guia infalível da conduta humana, o homem opõe a independência de seu querer, que pode ser arbitrário ao ponto de desejar deliberadamente a infelicidade. Mas ele busca também, com a investigação sobre o homem do subsolo, sublinhar a realidade do mal, enquanto ressalta aquilo que no homem não pode ser reduzido a uma espiritualidade piegas e otimista: a maldade de seus instintos e de seus desejos. É impossível afirmar que a legalidade do universo e a universalidade da razão guiam a conduta humana para o bem: à harmonia do universo o homem pode preferir a destruição, e à pretensa coincidência de interesse e virtude o homem opõe sua deliberada vontade de fazer o mal; de tal maneira que, contra todas as lendas otimistas da razão e do progresso, não se pode contestar a presença do demoníaco na vida do homem. Se o universo fosse harmonia, racionalidade, beleza e bondade, o mesmo não se poderia dizer do homem e de seu mundo, onde se aninha e reina o mal: para o homem não basta o instinto de autopreservação. O homem não está garantido na positividade de sua conduta por uma racional e predisposta coincidência de interesse e virtude: O homem não faz o mal porque ignora o próprio interesse, e caso conhecesse verdadeiramente sua própria vantagem não cometeria ações más. o homem não faz o mal por ignorância, pois também pode sentir puro gosto em fazer o mal: no homem do subsolo o conhecimento do bem e a ação má podem dar-se simultaneamente; o fato de conhecer o ideal não apenas não torna impossível o mal, como também instiga e tenta ao mal.


12. AS IDEIAS EM DOSTOIÉVSKI

Os romances de Dostoiévski são colocações de problemas e contrastes de ideias: seus heróis são verdadeiras e próprias “ideias personificadas”. A palavra “ideia” é uma das mais usadas por Dostoiévski, tanto em seus romances quanto no Diário de um escritor. Na verdade, todas suas personagens vivem de ideias, aderem a ideias, decifram ideias, combatem ideias: Ivan Karamázov “tem uma ideia” e Aliocha quer penetrar “o segredo desta ideia”; Versilov é “o inventor de uma sua ideia própria”; Kirílov se suicida porque “não suportou sua ideia”; Chatov tem “a sua ideia e vive para ela”. Dostoiévski se preocupa em entender a “ideia da Europa”, e deseja aprofundar a “ideia da Rússia”. Contudo, não encontramos em Dostoiévski uma definição daquilo que ele entende por ideia; assim, para tentar colher o significado de seu termo “ideia” temos buscar interpretar as imagens que ele utiliza para determiná-lo e configurá-lo.

12. O QUE É IDEIA PARA DOSTOIÉVSKI?

A primeira imagem que Dostoiévski utiliza para determinar a ideia é “semente divina”. uma força viva que produz e anima o mundo: “as ideias descem às almas dos homens e se propagam por contágio”. A capacidade de uma ideia de se difundir é imensa: “as ideias são contagiosas e difundem-se segundo leis que não podemos conceber totalmente”. O poder de uma ideia é totalmente independente do grau de cultura da pessoa que a ela adere: “às vezes uma ideia, que parece acessível apenas a uma inteligência culta e elevada, consegue repentinamente impressionar uma pessoa tosca, inculta e indiferente”. Os grandes moventes da história são ideias que, às vezes, podem ter um início imperceptível, incerto, invisível: Deus não necessita de grandes homens para difundir suas sementes; ele pode propagá-las até através da mediocridade, elevando-a a alturas inimagináveis:

A segunda imagem que Dostoiévski utiliza para o conceito de ideia é “segredo”: a ideia na qual um homem crê e da qual vive é chamada de “seu segredo”.  Mas a palavra “ideia” tem também um significado negativo: Raskolnikov vive de uma ideia à luz da qual parece logicamente permitido o homicídio de uma velha usurária inútil e danosa para ajudar os pobres explorados, humilhados e ofendidos. O bem apenas como utilidade (Raskolnikov); a liberdade que não pode se conciliar com a felicidade (O grande inquisidor); que uma velha inútil seja apenas um piolho a ser esmagado (Raskolnikov); que os homens são ratos (Versilov); os planos sociais dos demônios (Chigalióv); o super-homem suicida de Kirílov; o primado absoluto do povo russo segundo Chatov… são algumas idéias deformadas e deturpadas que geram apenas destruição e morte.

Assim, para Dostoiévski o termo “ideia” tem dois significados, claramente opostos entre si: no primeiro a ideia é semente celeste, realidade transcendente presente no coração do homem; e no segundo, é mais sugestão demoníaca que inspiração divina, é produto do homem errante e decaído, é deformação e traição da verdade.

13. DIFERENÇA ENTRE IDEIAS DIVINAS (IDEIAS) E IDEIAS DEMONÍACAS (IDEOLOGIAS)

Refere-se a duas formas do exercício da liberdade: pela primeira a verdade entra no mundo humano através da liberdade, conforme o Evangelho de João que afirma “a verdade vos fará livres”; pela segunda, ao invés, a liberdade, segundo a narração do pecado original, é a vontade de gozar do fruto proibido para tornar-se igual a Deus. De um lado, a liberdade é obediência: obediência ao ser, serviço humilde à verdade; homenagem à realidade e à verdade pré-existente; de outro, ela é rebelião: rebelião a Deus, luta contra o eterno, traição da verdade.

14. TEMAS CENTRAIS DA OBRA DE DOSTOIÉVSKI

Toda a obra de Dostoiévski gira em torno destes sentidos opostos de liberdade: a liberdade como obediência e a liberdade como rebelião, entre a obediência a Deus e o serviço ao diabo, entre o bem e o mal, entre a origem a ser recuperada e a queda a ser redimida, entre a positividade esperada escatologicamente e a negatividade experimentada temporalmente.

Uma experiência fundamental e decisiva em Dostoiévski é a constatação da realidade do mal: o mal e a dor, o pecado e o sofrimento, a culpa e a pena têm realidade efetiva e inelutável. Para ele, não se pode pensar que o mundo do homem esteja ordenado por uma harmonia e dominado pela razão, e desta forma determinado pelo bem e destinado ao progresso. Com isso, ele se coloca contra o fácil otimismo idealista e positivista do século XIX

15. O MAL PARA DOSTOIÉVSKI

Para Dostoiévski o mal não é apenas a fraqueza e a fragilidade do homem, mas a inclinação a ceder às tentações, aos instintos irresistíveis, aos desejos prepotentes. A realidade do mal é algo muito potente, porque é fruto de uma força vigorosa e robusta: de um lado é a presença eficaz do demoníaco e de outro a resoluta vontade do arbitrário. O mundo humano é dominado por uma positiva vontade de mal: o mal, o pecado, a culpa não são incapacidades humanas de persistir e perseverar no bem, mas são a instauração positiva de uma realidade negativa; são o fruto de uma vontade diabólica inteligente e consciente de si mesma; são a decisão de uma liberdade ilimitada desejosa de afirmação além de toda lei e de toda norma. O mal é produto da vontade e da liberdade do homem, que consciente e deliberadamente comete a ação má, e até mesmo sente prazer com todas as nuances que Dostoiévski trata em seus  grandes romances.

O mal pode ser, em primeiro lugar, resultado da tendência, muito frequente no homem, de transgredir a norma, seja ela lei moral, costume tradicional ou convenção social. Neste sentido, o mal assume o aspecto de uma consciente infração e de uma deliberada transgressão, que implica a afirmação da própria liberdade ilimitada e arbitrária contra o limite de uma norma. Trata-se da rebelião a uma ordem moral e a uma lei religiosa, rebelião que pode tomar o aspecto de uma titânica exaltação de si além de toda norma, além do bem e do mal.

O texto acima é a reprodução de uma prova aplicada pelo professor dr. Paulo Afonso de Araújo, disciplina de Filosofia da Religião II, graduação em Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora (2011). Os textos de referência para consulta da prova acima são resenhas produzidas pelo próprio professor e que eram estudadas durante as aulas. Algumas das minhas lembranças mais claras e agradáveis mostram a imagem daquele homem elegante, cabelos brancos e longos,  de postura austera e uma voz  firme e grave, mas também macia e ondulada, lendo e comentando os textos. Algumas vezes, a leitura me fazia penetrar tão profundamente nos ambientes de Dostoiévski que eu precisava sair e tomar água, tomar ar, para conseguir respirar. As aulas do professor Paulo Afonso me fizeram não apenas conhecer, mas  ser uma amante da obra desse grandioso filósofo. 

CITAR COMO

NUNES, A. I. C. Questões importantes sobre a obra de Dostoiévski: com base em textos do prof. Dr. Paulo Afonso Araújo (UFJF). Artigos de Filosofia. Juiz de Fora, 03 jul. 2019. Disponível em: https://artigosfilosofia.blogspot.com/2019/07/questoes-importantes-sobre-obra-de.html Acesso em: (data de acesso)

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ANTROPOLOGIA - SOBRE A OBRA "OS RITOS DE PASSAGEM", DE ARNOLD VAN GENNEP

Foto de 1920. Autor desconhecido.  Fonte:    http://www. intermedi a. uio.no/ariadne/Kulturhistorie/bilder/arnold-van-gennep        ...