O QUE É A ÉTICA PARA ARISTÓTELES
Idalina de Carvalho
Os
gregos chamaram de ética à elaboração teórica que se ocupa dos costumes
(moral), denominação que veio a ser consagrada. Para Aristóteles, a ética é uma
das ciências práticas, isto é, relacionadas à ação, sendo as demais a política
e a econômica. Nessa subdivisão, a ética aparece com o nome de sabedoria. No
Livro I da “Ética a Nicômaco" dá proeminência à política que está definida
nos textos que dedicou à matéria e foram preservados:
“Uma
cidade, claro está, não é um simples amontoado para evitar as deficiências
mútuas e intercambiar os serviços. Estas são duas de suas condições
necessárias, mas que não determinam a cidade. Uma cidade é uma reunião de casas
e de famílias para viver bem, isto é, para realizar uma vida perfeita e
independente”.
Isso
quer dizer que Aristóteles não separa a política da moral, como se dá nos
tempos modernos. Política e ética estão de certa forma superpostas,
confundindo-se os objetos de ambas, porquanto a segunda trata das virtudes e
dos meios de adquiri-las, sendo condição da felicidade, que, por sua vez, é o
objetivo visado pela cidade.
O livro inicia com o
questionamento sobre o que é o bem, afirmando também que todo indivíduo, bem
como toda e qualquer ação ou escolha tem como objetivo um bem, e este bem é
aquilo para onde todas as coisas tendem. E qual seria o mais alto de todos os
bens? Segundo Aristóteles, a felicidade é a melhor, a mais nobre e mais
aprazível coisa do mundo e, sendo considerada uma atividade da alma em
consonância com a virtude (e não como riqueza, honra, prazer etc), ela precisa
dos bens exteriores, porque não é possível realizar nobres atos sem os meios. Por
conta isso, questiona se a felicidade é adquirida pela aprendizagem, pelo
hábito ou adestramento; se é conferida pela providência divina ou se é produto
do acaso.
Se a felicidade é, dentre as coisas humanas, a
melhor, pode-se assegurar que é uma dádiva divina. Mesmo que venha como um
resultado da virtude, pela aprendizagem ou adestramento, ela está entre as
coisas mais divinas. A felicidade é uma atividade virtuosa da alma; os demais
bens são a condição dela, ou são úteis como instrumentos para sua realização.
O livro II da “Ética a Nicômaco” aborda as virtudes em suas duas espécies:
intelectuais e morais. De acordo com Aristóteles, as intelectuais são resultado
do ensino e por isso precisam de experiência e tempo. Já as virtudes morais,
são adquiridas pelo hábito – elas não surgem naturalmente em nós, são
adquiridas pelo exercício, da mesma forma como acontece com as artes. É, de
acordo com Aristóteles, pelas nossas ações na relação com os outros que nos tornamos justos ou injustos
– por isso é preciso estar atento para a qualidade de nossos atos: já que tudo depende deles, desde a juventude
é necessário criar o hábito de praticar atos virtuosos. É importante considerar
que nas virtudes, o excesso ou a falta são destrutivos: a exatidão está no meio-termo, o caminho do
meio entre a deficiência e o excesso no que se refere às paixões, às virtudes
morais. A virtude é meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por
falta. Entretanto, nem toda ação e nem
toda paixão admitem meio-termo: há
algumas ações ou paixões que implicam em maldade, como a inveja. Elas são más
em si mesmas, nelas não há retidão, mas erro. É absurdo procurar meio-termo em
atos injustos. Levando em conta que o estudo das virtudes tem como resultado a
ação (e não o conhecimento da virtude), é necessário ressaltar a prática dos
atos. É pela prática dos atos justos que se gera o homem justo, é pela prática
de atos temperantes que se gera o homem temperante; é através da ação que
existe a possibilidade de alguém tornar-se bom. Aristóteles prossegue,
diferenciando as paixões e ações como voluntárias e involuntárias, mas não
discorreremos sobre o assunto, para não alongar demasiadamente a explanação
– passaremos à especificação das
virtudes morais e intelectuais.
Entre as virtudes morais –
temperança, coragem, liberalidade, magnificência, o justo orgulho, a calma, a
veracidade, a espirituosidade, a amabilidade, a modéstia, a justiça – esta
última é considerada a virtude mais completa -
a justiça é considerada por muitos a maior das virtudes. A justiça é a
disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo e a
desejar o que é justo. É uma virtude completa por ser o exercício atual da
virtude inteira, ou seja, aquele que a possui pode exercer sua virtude sobre si
e sobre o próximo. Por isso se diz que somente a justiça, entre todas as virtudes,
é o bem do outro, visto que é possível fazer o que é vantajoso a um e outro. O
melhor dos homens é aquele que exerce sua virtude para com o outro, pois essa
tarefa é a mais difícil.
Vejamos abaixo a apresentação das virtudes morais, através de
quadro feito pela filósofa Marilena Chauí, em seu livro “Introdução à Filosofia
– dos pré-socráticos a Aristóteles:
Anexo I: QUADRO DAS VIRTUDES MORAIS
Sentimento ou
paixão
|
Situação em que
o sentimento ou
a paixão
são
suscitados
|
Vício (excesso)
|
Vício (falta)
|
Virtude (justo meio)
|
Prazeres
|
Tocar, ter ingerir
|
Libertinagem
|
Insensibilidade
|
Temperança
|
Medo
|
Perigo, dor
|
Covardia
|
Temeridade
|
Coragem
|
Confiança
|
Perigo, dor
|
Temeridade
|
Covardia
|
Coragem
|
Riqueza
|
Dinheiro, bens
|
Prodigalidade
|
Avareza
|
Liberalidade
|
Fama
|
Opinião alheia
|
Vaidade
|
Humildade
|
Magnificência
|
Honra
|
Opinião alheia
|
Vulgaridade
|
Vileza
|
Respeito próprio
|
Cólera
|
Relação com os outros
|
Irascibilidade
|
Indiferença
|
Gentileza
|
Convívio
|
Relação com os outros
|
Zombaria
|
Grosseria
|
Agudeza de espírito
|
Conceder prazer
|
Relação com os outros
|
Condescência
|
Tédio
|
Amizade
|
Vergonha
|
Relação de si com outros
|
Sem-vergonhice
|
Timidez
|
Modéstia
|
Sobre a boa sorte de alguém
|
Relação dos outros consigo
|
Inveja
|
Malevolêcia
|
Justa apreciação
|
Sobre a má sorte de alguém
|
Relação dos outros consigo
|
Malevolência
|
Inveja
|
Justa indignação
|
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia:dos
pré-socráticos a Aristóteles, vol. 01. São Paulo: Brasiliense, 1994.
De acordo
com Aristóteles, a parte racional da alma se divide em: científica (direcional
ou prática) e calculativa (especulativa e teórica). A calculativa é uma parte da alma
que concebe um princípio racional, ela versa sobre coisas universais e
teóricas, que não podem ser a não ser aquilo que são. O objeto da parte
calculativa é a verdade, logo, para o conhecimento especulativo o bem se
identifica com o verdadeiro e o mal com o falso. As disposições, pelas quais a
alma possui a verdade, são cinco: a arte, o conhecimento científico, a
sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva – que são as
virtudes intelectuais. A arte (tkné)
é idêntica a uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocínio. Toda
arte visa a geração e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de
produzir alguma coisa que tanto pode ser como não ser, e cuja origem está no
que produz, e não no que é produzido. A arte não se ocupa nem com as coisas que
são ou que se geram por necessidade, nem com as que fazem de acordo com a
natureza. A arte é uma questão de produzir e não de agir. No que se refere ao
conhecimento científico (episteme),
seu objeto é o necessário e eterno; toda ciência pode ser ensinada e seu objeto
aprendido. O conhecimento científico é um estado que nos torna capaz de
demonstrar, é quando um homem tem certa espécie de convicção, além de conhecer
os pontos de partida, que possui conhecimento científico. É uma disposição em
virtude da qual demonstramos. Sabedoria Prática (phrónesis) é característica de um homem que delibera bem sobre o
que é bom e conveniente para ele. Mas o homem com essa sabedoria não procurar
coisas boas somente para si, mas sabe deliberar sobre aquelas coisas que
contribuem para a vida boa em geral. A sabedoria pratica é uma capacidade
verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são boas ou más
para o homem. A sabedoria Teorética ou Filosófica (Sofia) é a razão intuitiva combinada com o conhecimento
científico, orientada para objetos mais elevados. É, dentre as formas de
conhecimento, a mais perfeita; superior à sabedoria prática que tem como objeto
as coisas humanas e diz respeito à ação; deveríamos possuir ambas as espécies
de sabedoria, mas de preferência a sabedoria teorética. E, por fim, a Razão
Intuitiva (nõus) consiste aquilo pelo
qual aprendemos as últimas premissas de onde parte a ciência; ela aprende os
primeiros princípios. Seu método é a indução, que apreende a verdade universal
e a partir disso aparece como evidente a si.
QUESTÕES
PRESENTES NA ÉTICA DE NICÔMACO: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma questão importante abordada
na ética aristotélica, em especial no livro “Ética a Nicômaco”, é a questão da
responsabilidade. Para Aristóteles, "O homem é princípio e genitor de seus
atos como o é de seus filhos" O princípio da responsabilidade baseia-se em
duas pressuposições: a realidade é contingente (o futuro não está definido) e
depende do indivíduo que age (o indivíduo é considerado autor de seus atos
quando o ato depende dele). Essas são as duas exigências para que uma ação
possa ser considerada virtuosa. O caráter é, para Aristóteles, resultado de
nossos atos - vícios e virtudes não são simples traços
psicológicos adquiridos, mas têm significado moral, porque pertencem ao campo
daquilo que depende de nós.
Outro ponto importante é no referente
à perfectibilidade do caráter: nesta abordagem há uma distinção a ser introduzida na questão da
responsabilidade humana, de acordo com as palavras do filósofo: "não é da
mesma maneira que as ações e o habitus são de pleno consentimento, nós somos
senhores de nossos atos, do princípio ao fim…Mas dos nossos habitus, só somos
senhores do princípio" O ato, na sua inteligibilidade, depende de mim,
porque tenho um domínio sobre as conseqüências diretas desse último; em
compensação, não posso antecipar precisamente todas as conseqüências indiretas
dos hábitos que assumi.
A amizade é outra questão presente em “Ética a Nicômaco”, para a qual
Aristóteles dedica dois livros (VIII e IX). Na totalidade da ética, para além
dos livros sobre a amizade, muito pouco é dito no sentido de se sugerir que o
homem pode e deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas; o
altruísmo está completamente ausente. Um homem deseja o bem do seu amigo por
amor ao amigo, e não como um meio para sua felicidade.
As várias formas de amizade mencionadas por Aristóteles constituem todas as
ilustrações da natureza social essencial do homem. No plano inferior, necessita
de amizades úteis . Num plano
mais elevado, forma amizades por
prazer, isto é, tem um prazer natural no convívio com os seus amigos.
Num plano ainda mais elevado, constitui amizades
por bondade, nas quais um amigo ajuda outro a viver a melhor vida.
No que tange à vida ideal, Aristóteles encara o bem-estar como uma
atividade em conformidade com a virtude. Para Aristóteles, a contemplação
constitui o ingrediente fundamental do bem-estar.O bem-estar deve ser uma
atividade de acordo com a virtude da melhor parte de nós, ou seja, a razão; a
atividade do bem-estar é teorética. É esta a melhor atividade que somos
capazes, uma vez que é o exercício do melhor em nós sobre o melhor de todos os
objetos, aqueles que são eternos e imutáveis. Segundo Aristóteles, não devemos seguir aqueles que afirmam que,
sendo nós homens, devemos limitar o pensamentos às coisas humanas. Devemos, na
medida do possível, nos apoderarmos da vida eterna, vivendo a vida desta parte
de nós, por ínfima que seja, que constitui a melhor e mais verdadeira de nós
próprios. Quem vive assim é o homem feliz.
O que se mostra bem claro nesta obra de Aristóteles é a sua maneira de
apontar uma medida para todas as ações
humanas, que é o justo-meio. A felicidade é definida como atividade da alma,
dirigida pela virtude perfeita; é excelente e divina, mas não é presente dos
deuses e nem produto do acaso, porque é preciso conquistá-la com muito
exercício e muita prática da virtude. Para tanto é necessário indagar sobre a
virtude e em que condição ela é um meio-termo para a felicidade. As virtudes
morais consistem em ser um meio entre dois extremos viciosos; em toda
quantidade é possível distinguir o excesso, o pouco e uma medida, que é o
meio-termo; quando se trata de coisas, o meio-termo é aquele ponto que se
encontra em igual distância entre dois pontos extremos, mas quando se trata do
homem, o meio-termo é aquilo que não peca nem por excesso e nem por defeito, e
esta medida muda muito e não é única para todos os homens. Como é difícil
estabelecer o justo-meio em cada caso particular, deve-se deixar esta definição
a uma pessoa sensata, que decida retamente; mas há casos em que não cabe
estabelecer nenhuma medida, assim como em excesso não existe medida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de
Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosá. Col. Os
pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973..
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história
da filosofia:dos pré-socráticos a
Aristóteles, vol. 01. São Paulo: Brasiliense, 1994.